Categorias: Comunicação compassiva, Tomada de decisão, Resolução de conflitos, Autor(a): Cassiana Souza, assistente social e paliativista Publicado em: 06/05/2025
Contexto
A reunião familiar é um potente instrumento terapêutico. Ao criar um espaço protegido de escuta, ela permite acesso à biografia, aos valores e às relações que cercam o paciente — revelando aspectos afetivos, sociais e, por vezes, conflitos que atravessam o cuidado. Esses elementos enriquecem o plano terapêutico individualizado e colaboram na abordagem da dor total. Nesta #PP, falamos sobre essa ferramenta de comunicação tão complexa quanto necessária.
Definição e indicações
A reunião familiar — também chamada de conferência familiar — é um encontro entre a equipe de saúde e os familiares do paciente que favorece um cuidado centrado no paciente e na sua rede de apoio. É um espaço que permite escutar, acolher e informar a família quanto às condições de saúde do paciente, além de alinhar objetivos e discutir o plano de cuidados construído em um processo de tomada de decisão compartilhada.
Não há indicação formal para a realização de uma reunião familiar ou mesmo um número de vezes que ela deva ser realizada — pode ocorrer em qualquer momento do cuidado, especialmente diante de mudanças no quadro clínico. Mais do que um protocolo, trata-se de um convite à participação no cuidado e de uma oportunidade para esclarecer dúvidas e acolher as angústias que acompanham o adoecimento.
Preparação
Preparar-se para a reunião familiar é essencial para o êxito do encontro. A coesão da equipe quanto à finalidade da reunião, assim como a garantia de tempo protegido para sua realização, são fatores que favorecem a criação de um espaço seguro de comunicação. O roteiro deve ser flexível e adaptável às particularidades de cada paciente e situação clínica — o que, por si só, já representa um desafio dentro da rotina sobrecarregada dos profissionais.
Identificada a demanda para a reunião familiar — independentemente do momento do cuidado — é necessário definir quem deve estar presente. Sempre que possível, o paciente deve ser consultado sobre seu desejo de participar e sobre quem ele gostaria que estivesse no encontro. Quando isso não for viável do ponto de vista clínico, cabe à equipe identificar os participantes com base nos atendimentos anteriores, nos acompanhantes habituais e, se disponível, na biografia do paciente.
A composição da equipe também deve considerar os objetivos do encontro. A condução da reunião não é, necessariamente, uma atribuição médica — deve ser feita por quem tiver estabelecido maior vínculo com o paciente e sua família. Uma pré-reunião, mesmo que breve, entre os profissionais envolvidos é recomendada para alinhamento dos pontos a serem abordados e para garantir pontualidade. Embora o equilíbrio entre número de familiares e profissionais seja desejável, esse critério não deve ser encarado como rígido.
Condução da reunião familiar
Cada serviço deve construir sua própria forma de conduzir este atendimento. Ainda assim, há elementos básicos recomendados, como a apresentação inicial — nome, função ou vínculo com o paciente, feita de forma autodenominada. É mais acolhedor quando a equipe reconhece a importância da presença de todos, valorizando quem está, sem desmerecer quem, por qualquer razão, não pôde comparecer.
A reunião deve acontecer como um diálogo. É fundamental que os familiares tenham espaço de fala, e não apenas escutem condutas ou definições. É o momento de descreverem a história do paciente sob sua ótica, compartilharem as dinâmicas familiares e os impactos do adoecimento. Não há um roteiro fixo — cada situação exige um caminho próprio. A escuta atenta deve guiar o encontro e ajudar a trazer à tona aspectos relevantes, como perda de funcionalidade, diagnósticos prévios e testamento vital.
Durante a escuta biográfica, é necessário observar com atenção os valores do paciente — que nem sempre coincidem com os valores expressos pelos familiares. Com frequência, há projeções involuntárias. Nesses casos, vale convidar à reflexão: “O que você acredita que ele ou ela desejaria nesta situação?”. Essa abordagem, conhecida como julgamento substitutivo, pode ajudar a alinhar decisões com os desejos da pessoa adoecida.
Cuidados necessários durante a reunião
Em muitas reuniões, especialmente as iniciais, os familiares podem demonstrar insegurança. Nessas situações, é essencial destinar tempo para o vínculo e reforçar que a pauta mais importante do encontro é a que vem da própria família.
Algumas condições merecem atenção especial da equipe, como:
Núcleo familiar reduzido, frequentemente associado à sobrecarga do cuidador, tanto durante quanto após a hospitalização;
Presença de familiar com transtorno psiquiátrico descompensado ou em risco de descompensação, exigindo, quando possível, a participação de profissional da psicologia;
Fatores de risco para transtorno do luto prolongado, como perdas múltiplas, lutos traumáticos ou história de adoecimento semelhante ao vivido.
Além do conteúdo verbal, a equipe deve observar os sinais não-verbais — inquietação, silêncio prolongado, mudança de postura (para saber mais sobre este tema, leia a #PP016 Comunicação não-verbal) — que podem indicar a necessidade de aprofundar, redirecionar ou até encerrar o tema. Se houver uma solicitação explícita de encerramento por parte dos familiares, ela deve ser respeitada.
O fechamento da reunião é parte fundamental do processo. Reafirmar os pontos discutidos, ouvir como a família compreendeu o que foi dito e alinhar próximos passos fortalece a confiança e amplia a segurança no cuidado, garantindo que as vias de comunicação permaneçam abertas.
Considerações sobre diferentes dinâmicas familiares
Embora a reunião familiar seja um espaço com objetivos definidos, não é incomum que os familiares aproveitem o momento para trazer à tona emoções e situações de períodos anteriores ao adoecimento — como brigas, frustrações ou vivências mal elaboradas. Cabe à equipe acolher esses relatos com escuta atenta, postura neutra e ausência de julgamento. O silêncio, nesse contexto, pode ser uma ferramenta poderosa: ao permitir pausas, cria-se espaço para reorganização emocional diante de temas sensíveis. Conduzir bem uma reunião familiar requer mais do que habilidade comunicacional. Exige preparo, sensibilidade e capacidade de se adaptar ao ritmo e à direção que o diálogo assume naquele momento.
Situações que envolvem múltiplos núcleos familiares — filhos de diferentes uniões, irmãos com histórias complexas — exigem atenção redobrada. O foco deve permanecer na preservação dos vínculos significativos para o paciente e na organização familiar possível. Quando necessário, diferentes encontros com grupos distintos podem ser agendados, de forma a contemplar todos os envolvidos sem sobrecarregar o ambiente do cuidado.
É importante lembrar que a reunião familiar não se propõe a ser uma sessão de terapia. O objetivo não é modificar vínculos ou dinâmicas familiares, mesmo que estas se mostrem disfuncionais. Através de uma escuta qualificada e condução cuidadosa, é possível identificar como cada familiar pode contribuir com o cuidado — a partir do lugar que ocupa nessa rede relacional.
Após a reunião
Após a reunião familiar, recomenda-se que a equipe se reúna brevemente para avaliar como foi o encontro: se os objetivos foram alcançados, como foi percebida a dinâmica familiar e de que forma os profissionais podem contribuir com as demandas trazidas. Ainda, este momento é importante para a autoavaliação da equipe quanto à condução da reunião, que servirá de aprendizado para os próximos encontros.
O registro em prontuário é obrigatório. Deve conter os nomes de todos os participantes presentes, um resumo coerente dos principais pontos discutidos e o planejamento dos cuidados acordado com o paciente — ou, quando ele não puder participar, com seus representantes legais — sempre respeitando seus valores previamente expressos.
Modo de usar:
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Prepare o ambiente: dê preferência a um espaço calmo, agradável e que garanta privacidade. Sempre que possível, ofereça lenços descartáveis, água e café, minimizando interrupções e proporcionando conforto aos participantes.
Leve o paciente, se ele desejar participar: quando possível, conduza-o ao local da reunião. Caso esteja restrito ao leito, realize o encontro ali mesmo, garantindo privacidade com o uso de biombos ou cortinas e cuidando para que o paciente não esteja em posição inferior aos demais.
Lembre-se dos familiares mais silenciosos — ou silenciados: garantir a participação de todos é parte essencial do cuidado. Valide dúvidas, ofereça espaço de fala para quem foi interrompido e, se necessário, use perguntas facilitadoras, como: “Há algo que possamos fazer para ajudá-lo?”, “Quais são suas preocupações neste momento?” ou “Existe algo importante de natureza afetiva, religiosa ou prática que gostaria de compartilhar conosco?”
Dica da especialista 🤌🏻
Você já tem o e-pali ou costuma ler A incrível newsletter paliativa? Então já sabe que essa é uma seção especial: aqui compartilhamos insights a partir da nossa visão e experiência profissional.
💡 Evite jargões técnicos e, se precisar usá-los, explique de forma imediata e clara. A comunicação deve ser assertiva e objetiva, evitando falas longas e prolixas que possam comprometer a compreensão, especialmente em contextos emocionalmente carregados. Lembre-se: em uma boa reunião, quem mais fala é a família, não a equipe.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Cuidado centrado no paciente: Abordagem do cuidado em saúde que coloca a pessoa - e não apenas sua condição clínica - no centro do processo de cuidado. Propõe que o serviço de saúde se ajuste às necessidades, valores e preferências do paciente, promovendo uma parceria ativa entre equipe, paciente, familiares e cuidadores. Essa abordagem busca garantir que todos sejam respeitados, bem informados, engajados nas decisões, apoiados e tratados com dignidade, compaixão e empatia. Dor total: Conceito criado por Dame Cicely Saunders na década de 1960, que propõe que a dor é multidimensional, não apenas física. Esse conceito apresenta o sofrimento como um fenômeno abrangente, envolvendo dimensões físicas, emocionais, sociais e espirituais, que estão interligadas e se influenciam mutuamente. Atualmente, esse entendimento pode ser ampliado para o termo sofrimento total, aplicando-se a outros tipos de sofrimento que, anteriormente, eram considerados exclusivamente físicos, como a dispneia e a náusea. Julgamento substitutivo: Processo no qual um terceiro deverá tomar decisões considerando o que o paciente gostaria que fosse feito, não o que ele mesmo entende ser a melhor opção. É esperado que este seja o modelo de tomada de decisão exercido pelo procurador para cuidados de saúde. Plano de cuidados: Estratégia através da qual o objetivo de cuidado será alcançado. É sempre individualizado, conforme fase da doença, valores e biografia do paciente. Reunião familiar: Encontro estruturado entre a equipe de saúde, o paciente (quando possível) e seus familiares ou representantes, com o objetivo de alinhar informações, esclarecer dúvidas, promover escuta ativa e favorecer decisões compartilhadas, respeitando os valores e desejos do paciente. Também chamada de conferência familiar. Tomada de decisão compartilhada: Processo colaborativo em que profissionais de saúde, pacientes e — quando apropriado — seus familiares ou representantes constroem juntos as decisões sobre o cuidado, integrando evidências clínicas (conhecimento técnico) com os valores, preferências e objetivos de vida do paciente. Transtorno do luto prolongado: Transtorno de saúde mental caracterizado por sofrimento intenso, persistente e incapacitante após uma perda, com prejuído do funcionamento social, ocupacional ou outras áreas da vida do enlutado. Também chamado de luto prolongado, luto complicado ou luto patológico.
Referências bibliográficas
AFYA. Medicina de família: série comunicação médica. Como realizar uma reunião familiar. Disponível em: https://portal.afya.com.br/medicina-de-familia/seriecomunicacao-medica-como-realizar-uma-reuniao-familiar. Acesso em: 01 set. 2024.
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