Categorias: Fundamentos, Gestão em Cuidados Paliativos, Educação para a morte Autores: Fernanda Tourinho, médica clínica e paliativista, Juliana Martins, médica clínica e paliativista Publicado em: 29/01/2025
Contexto
Os Cuidados Paliativos, como os conhecemos hoje, emergiram no século XX, mas suas raízes são muito mais antigas e profundamente significativas. Explorar essa trajetória nos permite compreender como a compaixão e o cuidado moldaram a prática ao longo dos séculos, situando o papel essencial dos Cuidados Paliativos no presente e inspirando a construção de um futuro de excelência nessa abordagem. Nesta #PP, mergulhamos na história dos Cuidados Paliativos. O conceito de Cuidados Paliativos foi discutido na PP#001.
Da Antiguidade à Idade Moderna
O termo hospice, historicamente relacionado aos Cuidados Paliativos, remonta ao século V, quando surgiram abrigos para peregrinos e viajantes, como o Hospício do Porto de Roma. Nesse local, a médica Fabíola, discípula de São Jerônimo, oferecia cuidados aos peregrinos que chegavam à cidade.
Na Idade Média, os hospices, ou hospedarias, eram estabelecimentos destinados ao acolhimento de peregrinos e viajantes, oferecendo abrigo temporário e, em algumas ocasiões, assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade, como doentes, famintos e mulheres em trabalho de parto. Esses locais, frequentemente vinculados a instituições religiosas e localizados dentro de monastérios, não tinham como foco principal o cuidado com os moribundos ou doentes graves, mas serviam como apoio para quem percorria rotas de peregrinação, como o Caminho de Santiago de Compostela. Foi também na Idade Média que surgiu a palavra "paliativo", derivada do latim pallium, que significa capa ou manto, usado para proteção. Seu uso como adjetivo foi registrado pela primeira vez no século XVI, e como substantivo, no século XVII, mas não estava associado à abordagem de cuidado como conhecemos hoje.
Na Idade Moderna (séculos XV a XVIII), instituições de caridade começaram a se especializar no cuidado de doentes crônicos e em fim de vida. Um exemplo marcante é a Ordem das Irmãs da Caridade, fundada por São Vicente de Paulo em Paris no século XVII. A atuação dessa organização foi além da França, contribuindo para a fundação de instituições como o St. Joseph’s Hospice, inaugurado em Londres no início do século XX.
A Idade Contemporânea e o Movimento Hospice Moderno
Apesar de se chamar movimento hospice moderno, ele teve início na Idade Contemporânea, personificado na figura de Dame Cicely Saunders, uma inglesa com formação em enfermagem, assistência social e medicina, cuja vida foi dedicada ao alívio do sofrimento humano.
Com uma trajetória marcada pelo contato direto com o sofrimento humano, inclusive durante a Segunda Guerra Mundial, Cicely desenvolveu um modelo de assistência que deu origem ao movimento hospice moderno. Seu objetivo era abordar o sofrimento de pacientes em terminalidade de maneira individualizada e integral. Foi ela quem cunhou o termo dor total, ao observar o sofrimento multidimensional — físico, emocional, social e espiritual — de seus pacientes.
Em 1967, Cicely fundou o St. Christopher’s Hospice, no Reino Unido, a primeira instituição especializada em oferecer cuidados integrais a pacientes com doenças avançadas. Essa instituição, que permanece como referência mundial em Cuidados Paliativos, simboliza o marco inicial desse movimento. No Reino Unido, Cuidados Paliativos são reconhecidos como uma área de atuação médica desde 1987.
O St. Christopher’s Hospice também foi o local onde Cicely Saunders recebeu seus próprios cuidados de fim de vida em 2005, refletindo a prática de cuidado que ela mesma ajudou a construir.
O termo Cuidados Paliativos foi introduzido em 1974 por Balfour Mount, médico canadense, ao fundar uma unidade de Cuidados Paliativos em seu país. Inspirado pelo modelo do St. Christopher's Hospice, de Cicely Saunders, Mount preferiu o termo palliative care ao invés de hospice, por sua aceitação mais ampla. O termo foi aceito pela OMS, que conceituou Cuidados Paliativos pela primeira vez em 1990. Atualmente, o termo Cuidados Paliativos é utilizado para definir a abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes com doenças ameaçadoras à vida, desde o diagnóstico, enquanto o cuidado hospice é uma modalidade de Cuidados Paliativos focada exclusivamente em pacientes em terminalidade, garantindo conforto e dignidade também nesta fase.
História dos Cuidados Paliativos no Brasil
Apesar de discussões iniciadas já na década de 70 do século XX, os primeiros registros de serviços brasileiros são da década de 80. Na década de 90, o Prof. Marco Túlio de Assis Figueiredo inicia atendimentos na Escola Paulista de Medicina, em São Paulo. Na mesma década, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) inaugurou, no Rio de Janeiro, o Hospital Unidade IV, dedicado exclusivamente aos Cuidados Paliativos.
Em 2000, o Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo iniciou o atendimento domiciliar em Cuidados Paliativos e, dois anos depois, inaugurou uma enfermaria exclusiva no hospital. Nesse mesmo ano, o Ministério da Saúde incluiu os Cuidados Paliativos como parte da assistência em Oncologia pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Alguns marcos foram especialmente fundamentais para a prática de Cuidados Paliativos no Brasil:
A fundação da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) em 2005, com a missão de representação multiprofissional de Cuidados Paliativos no Brasil, comprometida com o seu desenvolvimento e reconhecimento como campo de conhecimento científico e área de atuação profissional.
O reconhecimento da ortotanásia pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) como fundamento da prática ética da Medicina, por meio da Resolução 1.805/2006;
O estabelecimento de diretrizes para a organização dos cuidados paliativos no âmbito do SUS, conforme a Resolução nº 41, de 31 de outubro de 2018, do Ministério da Saúde;
A publicação da Política Pública Nacional de Cuidados Paliativos (PNCP) pelo Ministério da Saúde, em 2024, por meio da Portaria nº 3.681.
Atualmente, o Brasil atravessa um período de significativa expansão dos Cuidados Paliativos. De acordo com o último Atlas da ANCP, publicado em 2022, foram registrados 234 serviços de Cuidados Paliativos, representando um avanço relevante em comparação ao levantamento anterior. No entanto, ainda há uma concentração expressiva desses serviços na região Sudeste, que abriga cerca de 42% do total. Observa-se também um aumento contínuo no número de cursos de formação na área. Para os próximos anos, é possível esperar uma ampliação tanto do número quanto da capilaridade dos serviços de Cuidados Paliativos no país, especialmente após a publicação da PNCP.
Modo de usar:
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Preserve a memória: Compartilhe a história dos Cuidados Paliativos com a sociedade, promovendo a conscientização sobre a importância do cuidado humanizado e do acesso equitativo aos serviços, além de apoiar políticas públicas voltadas para essa finalidade.
Construa o futuro: Use a história dos Cuidados Paliativos como ferramenta para sensibilizar e capacitar profissionais de saúde, incorporando esse legado em treinamentos e discussões interdisciplinares.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP): Instituição de representação multiprofissional de Cuidados Paliativos no Brasil. Tem como missão o desenvolvimento e reconhecimento dos Cuidados Paliativos como campo de conhecimento científico e área de atuação profissional. Fundada em 2005, tem sede em São Paulo. Conselho Federal de Medicina (CFM): Autarquia que possui atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica no Brasil. Cuidados de fim de vida: Cuidados ofertados a pacientes em terminalidade com o propósito de assegurar qualidade de vida até os últimos dias e proporcionar uma morte digna e sem sofrimento. Fazem parte dos Cuidados Paliativos e, por isso, possuem os mesmos princípios, porém não são sinônimos. Dame Cicely Saunders: Médica, enfermeira e assistente social inglesa responsável pelo início do movimento hospice moderno e fundadora do St. Christopher’s Hospice, em Londres. Foi Dame Cicely que cunhou o termo dor total. Dor total: Conceito criado por Cicely Saunders na década de 1960, que propõe que a dor é multidimensional, não apenas física. Esse conceito apresenta o sofrimento como um fenômeno abrangente, envolvendo dimensões físicas, emocionais, sociais e espirituais, que estão interligadas e se influenciam mutuamente. Atualmente, esse entendimento pode ser ampliado para o termo sofrimento total, aplicando-se a outros tipos de sofrimento que, anteriormente, eram considerados exclusivamente físicos, como a dispneia e a náusea. Hospice: Termo utilizado para duas definições: um local de cuidado e um modelo de assistência em Cuidados Paliativos. Local de Cuidado: Unidade de internação especializada no cuidado de pacientes em terminalidade, tal como o St. Christopher Hospice. Modelo de assistência: Filosofia de cuidado integral ofertado a pacientes em terminalidade, que pode ser realizado em diferentes locais, como o domicílio e também em unidades hospice. Ortotanásia: Morte natural, no tempo certo, sem prolongamento artificial do processo de morrer e também sem antecipação da morte. É o que buscam os Cuidados Paliativos. Política Nacional de Cuidados Paliativos (PNCP): Conjunto de medidas e diretrizes instituídas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) pelo Ministério da Saúde do Brasil para garantir acesso a Cuidados Paliativos de qualidade aos usuários do sistema. A PNCP foi instituída através da Portaria nº 3.681, de 7 de maio de 2024. Sistema Único de Saúde (SUS): Sistema público de saúde brasileiro que oferece atenção integral à saúde a todas as pessoas que se encontram em território nacional. Criado através da Lei 8.080 em 1990 e gerido pelo Ministério da Saúde, é considerado um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo. Orienta-se princípios da Universalidade, Equidade e Integralidade. Terminalidade: Termo que define o último período da vida e fase mais avançada de uma doença, em que a saúde não pode ser recuperada. É marcado especialmente pelo declínio funcional do paciente e pela incurabilidade da doença. Na literatura, está associado aos 6 últimos meses de vida, embora cada vez mais seja entendido não como um marcador de tempo, mas de estado de saúde. A maior parte da literatura considera terminalidade como sinônimo de fim de vida, embora algumas correntes façam distinção entre esses dois termos. Na Escola de Habilidades Paliativas, esses termos são utilizados como sinônimos.
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💡A história dos Cuidados Paliativos nos ensina que aliviar o sofrimento é um compromisso milenar da humanidade. Conhecer essa trajetória nos fortalece como profissionais e nos inspira a buscar uma prática cada vez mais compassiva e eficiente.
Referências bibliográficas
Tourinho F. E-pali: conceitos e fundamentos. [S.l.: s.n.], 2023
Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. Vamos falar de Cuidados Paliativos [Internet]. 2015. Disponível em: https://sbgg.org.br/wp-content/uploads/2014/11/vamos-falar-de-cuidados-paliativos-vers--o-online.pdf. Acessado em: 12/01/2025.
NEJM Resident360 [Internet]. 2020. Brief History of Palliative Care. Disponível em: www.resident360.nejm.org/content-items/history-of-palliative-care. Acessado em: 12/01/2025.
Floriani C, Schramm F, Casas para os que morrem: a história do desenvolvimento dos hospices modernos. História, Ciências, Saúde, v.17, supl.1, jul. 2010, p.165-180.
Cicely Saunders International [Internet]. Disponível em: www.cicelysaundersinternational.org. Acessado em: 24/01/2025.
Ministério da Saúde. Cuidados Paliativos. Resolução nº 41, de 31 de outubro de 2018. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cit/2018/res0041_23_11_2018.html
Ministério da Saúde. Política Nacional de Cuidados Paliativos. Portaria nº 3.681, de 7 de maio de 2024. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2024/prt3681_22_05_2024.html
Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.805, de 28 de novembro de 2006. https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2006/1805
Guirro U, Castilho R, Crispim D, de Lucena N. Atlas dos Cuidados Paliativos no Brasil 2022. São Paulo: Academia Nacional de Cuidados Paliativos; 2023.
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