Categorias: Fundamentos Publicado em: 15/01/2025 Autores: Fernanda Tourinho, médica clínica e paliativista e Juliana Martins, médica clínica e paliativista
Contexto
A abordagem paliativa é indicada precocemente para todas as pessoas com doenças ameaçadoras à vida, independentemente da idade, prognóstico ou diagnóstico. No entanto, a identificação precoce desses pacientes permanece um desafio global, e a oferta de Cuidados Paliativos ainda ocorre, em grande parte, de forma tardia, frequentemente próxima ao fim da vida.
Identificar corretamente os pacientes que podem se beneficiar dessa abordagem é o primeiro passo para garantir seu acesso.
Quem se Beneficia de Cuidados Paliativos?
Qualquer pessoa com uma condição de saúde ou doença grave que enfrente problemas físicos, emocionais, sociais ou espirituais relacionados à sua doença pode se beneficiar da abordagem paliativa.
A própria definição de Cuidados Paliativos da Organização Mundial da Saúde (OMS) já estabelece os critérios para sua indicação (confira a discussão sobre a definição de Cuidados Paliativos na PP #001):
"Uma abordagem que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente (adultos e crianças) e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida. Ela previne e alivia sofrimento através da identificação precoce e avaliação e tratamento corretos da dor e de outros problemas, sejam eles físicos, psicossociais ou espirituais."
Para a indicação de cuidados paliativos, alguns aspectos do conceito merecem destaque:
Pacientes com doença ameaçadora à vida, independentemente da idade; e
A presença de sofrimento físico, psicossocial ou espiritual.
Uma doença ameaçadora à vida pode ser definida como uma condição de qualquer etiologia, ativa, grave, progressiva e que cause sofrimento multidimensional ao paciente, seus familiares e cuidadores.
Qualquer etiologia: cardiovascular, degenerativa, neurológica, pulmonar, hepática, renal, neoplásica, infecciosa, entre outras;
Ativa: doença que apresenta problemas de saúde no momento;
Grave: debilitante e que coloca a vida em risco;
Progressiva: piora ao longo do tempo.
Além dos pacientes com doenças crônicas ameaçadoras à vida, é importante destacar que pacientes frágeis ou sob risco de morte súbita também podem se beneficiar da abordagem paliativa, mesmo que isso não esteja explícito na maioria das definições.
Doenças e Condições de Saúde
Ao contrário da associação predominante durante muitos anos entre cuidados paliativos e câncer, essa abordagem beneficia pacientes com uma ampla variedade de doenças e condições de saúde. Atualmente, a maior necessidade de cuidados paliativos no mundo está associada às doenças cardiovasculares.
Doenças cardiovasculares: Insuficiência cardíaca congestiva, coronariopatia inoperável, doença valvar avançada;
Síndromes demenciais: Demências avançadas de diversas etiologias (Doença de Alzheimer, vasculares, entre outras);
Doenças neurológicas: Esclerose lateral amiotrófica (ELA), esclerose múltipla, Parkinson, doenças cerebrovasculares (AVC);
Doenças infecciosas: SIDA;
Doenças renais: Insuficiência renal grave em pacientes não candidatos a transplante ou tratamento substitutivo (diálise);
Doenças pulmonares: Doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), fibrose pulmonar;
Doenças hepáticas: Doença hepática crônica de qualquer etiologia com critérios de gravidade;
Doenças neoplásicas: Câncer metastático ou loco-regional avançado, tumores sólidos em progressão;
Condições de saúde: Estado vegetativo persistente ou estado mínimo de consciência por diferentes etiologias (fora da fase aguda); síndrome de fragilidade; qualquer doença com sintomas persistentes, mal controlados ou refratários, apesar da otimização do tratamento específico.
Como Identificar as Necessidades Paliativas?
Diversos critérios têm sido estudados para identificar pacientes com risco aumentado de piora clínica e necessidades paliativas não atendidas. Esses critérios podem ser organizados em quatro categorias principais:
Pergunta Surpresa: Ferramenta prognóstica baseada na opinião clínica do especialista. A pergunta é: “Você se surpreenderia se este paciente falecesse no próximo ano?”. Uma resposta negativa sugere maior risco e necessidade de avaliação mais aprofundada.
Critérios Gerais de Progressão: Sinais como queda na funcionalidade, internações recorrentes e não programadas, perda de peso, aumento da dependência e sintomas persistentes não controlados.
Critérios Específicos por Doença: Indicadores específicos que refletem a gravidade de cada condição, como marcadores clínicos em doenças cardíacas, pulmonares ou neurológicas avançadas.
Solicitação pelo Paciente ou Familiares: A demanda identificada diretamente pelo paciente ou familiares também constitui uma indicação clara para cuidados paliativos.
Ferramentas de Triagem
Para superar os desafios da identificação precoce de necessidades paliativas, diversas ferramentas foram desenvolvidas para auxiliar médicos e outros profissionais de saúde a reconhecer pacientes que podem se beneficiar dessa abordagem. Esses modelos integram os critérios discutidos anteriormente, facilitando a identificação de pacientes em risco de deterioração clínica e com benefício potencial de cuidados paliativos.
As ferramentas mais amplamente utilizadas incluem:
SPICT-BR (Supportive and Palliative Care Indicators Tool): Baseia-se em sinais de deterioração e complexidade de sintomas para identificar pacientes com risco de piora clínica e necessidade de Cuidados Paliativos. Validado para o português brasileiro, possui uma versão adicional com linguagem simplificada – o SPICT4ALL –, que pode ser utilizada por cuidadores profissionais, familiares e outros envolvidos no cuidado de pessoas com doenças graves. Publicada originalmente em 2010 por Kirsty Boyd e Scott Murray, do Primary Palliative Care Research Group da Universidade de Edimburgo, na Escócia.
NECPAL-BR (Necessidades Paliativas): Também validado para o português brasileiro, o NECPAL-BR avalia a necessidade de Cuidados Paliativos com base em diversos critérios, como: previsão clínica de sobrevida (pergunta surpresa), estado funcional, sintomas não controlados, demanda identificada pela equipe, pelo próprio paciente e/ou familiares, entre outros. Inclui critérios gerais de piora clínica e critérios específicos para doenças prevalentes, como insuficiência cardíaca e câncer. Publicado originalmente em 2011 pelo Instituto Catalão de Oncologia (ICO), através do Observatório Qualy - Cátedra de Cuidados Paliativos da Universidade de Vic - Central da Catalunha (UVic-UCC), na Espanha
Gold Standards Framework – Prognostic Indicator Guidance (GSF-PIG): Similar ao NECPAL-BR, o GSF-PIG utiliza a "pergunta surpresa" como um dos critérios de avaliação. É uma ferramenta para busca ativa e coordenação do cuidado em Cuidados Paliativos, que combina indicadores clínicos gerais de declínio e específicos das doenças para reconhecer a fase da doença e determinar o suporte necessário. Atualmente, essa ferramenta não possui tradução ou validação para o português.
De forma geral, é importante destacar que as ferramentas de triagem em Cuidados Paliativos tendem a ser mais sensíveis para a identificação da terminalidade – ou seja, fases avançadas da doença marcadas por declínio funcional significativo. Nesse estágio, a demanda por Cuidados Paliativos é mais elevada e muitas vezes supera a necessidade de terapias modificadoras da doença. Por isso, o diagnóstico de uma doença ameaçadora à vida permanece o critério mais abrangente e sensível para indicar Cuidados Paliativos.
Modo de usar:
Descubra como aplicar esta pílula paliativa de forma prática em seu dia a dia.
Domine as indicações: fique atento a pacientes com diagnóstico de doença ameaçadora da vida de qualquer etiologia e a sinais de sofrimento multidimensional que indicam a abordagem paliativa.
Escolha uma ferramenta de triagem: estude as ferramentas e escolha a que melhor se aplica à sua realidade para aplicar de forma sistemática.
Faça busca ativa: seja proativo. Treine seu olhar para e discuta os critérios de indicação com os profissionais ao seu redor, especialmente em reuniões de equipe e passagens de plantão.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Doença ameaçadora à vida: Condição de saúde de qualquer etiologia, ativa, grave, progressiva e que causa sofrimento multidimensional ao paciente, seus familiares e cuidadores. Ferramenta de triagem em Cuidados Paliativos: Ferramenta destinada à identificação de pacientes que possam se beneficiar da abordagem paliativa. Uma boa ferramenta de triagem deve ser sensível – ou seja, capaz de identificar todos os pacientes com necessidades paliativas –, mesmo que, para isso, apresente menor especificidade, incluindo pacientes que talvez não tenham um benefício claro da abordagem paliativa. Além disso, é desejável que a ferramenta identifique os pacientes precocemente, e não apenas em fases avançadas ou no fim de vida. Exemplos incluem: NECPAL-BR, SPICT-BR e GSF-PIG. Pergunta surpresa: Ferramenta prognóstica do tipo previsão clínica de sobrevida, baseada na opinião clínica do especialista. A pergunta é: “Você se surpreenderia se este paciente falecesse no próximo ano?”. Uma resposta negativa sugere maior risco de óbito. Sofrimento: Experiência repulsiva e sua emoção negativa correspondente. Pode ser de natureza física, psicoemocional, social e/ou espiritual. Terapia modificadora de doença: Todo tratamento que modifica o curso de uma doença, com objetivo de aumento de sobrevida e, idealmente, melhora na qualidade de vida. Não é sinônimo de terapia curativa.
Dica da especialista 🤌🏻
Você já tem o e-pali ou costuma ler A incrível newsletter paliativa? Então já sabe que essa é uma seção especial: aqui compartilhamos insights a partir da nossa visão e experiência profissional.
💡É importante lembrar que, embora a avaliação de um paciente por um profissional treinado em cuidados paliativos seja fundamental quando orientada pelas ferramentas, a indicação de cuidados paliativos não deve se restringir a elas, uma vez que essas ferramentas são mais sensíveis para identificar a terminalidade. A indicação precoce de cuidados paliativos continua sendo um desafio e requer treinamento de diferentes categorias profissionais para seu reconhecimento.
Referências bibliográficas
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Highet G, Crawford D, Murray SA, Boyd K. Development and evaluation of the Supportive and Palliative Care Indicators Tool (SPICT): a mixed-methods study. BMJ Support Palliat Care. 2014;4(3):285-290. doi:10.1136/bmjspcare-2013-000488
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Cherny NI, Fallon MT, Kaasa S, Portenoy RK, Currow DC, editors. Oxford Textbook of Palliative Medicine. 6th ed. Oxford: Oxford University Press; 2021. 1–1409.
Excelente 🤝