Categorias: Avaliação prognóstica, Comunicação compassiva, Resolução de conflitos, Tomada de decisão Autor(a): Juliana Martins, médica clínica e paliativista Publicado em: 04/06/2025
Contexto
“Quanto tempo eu tenho, doutora?” — essa pergunta, frequente em Cuidados Paliativos, desafia o conhecimento técnico e a sensibilidade humana. A predição — isto é, a comunicação de um prognóstico previamente elaborado — oferece subsídios para que pacientes e suas famílias possam se organizar emocional e logisticamente. Ainda que tenhamos modelos preditivos e ferramentas fundamentadas em evidência científica, a incerteza permanece como parte inerente do processo de prognosticação — o que torna a comunicação prognóstica ainda mais complexa. Nesta #PP, abordaremos a importância e os desafios da predição.
Importância da predição
Prognosticação não é adivinhação: é um processo de estimativa clínica que orienta decisões e cuidados. Quando realizada — e comunicada — com responsabilidade, permite alinhar expectativas, planejar prioridades e evitar intervenções invasivas que não agregam valor ao paciente.
Pacientes que tem compreensão clara sobre sua condição tendem a tomar decisões mais coerentes com seus valores. Recusam, com frequência, tratamentos que consideram inadequados. A construção da consciência prognóstica — ou seja, a capacidade de integrar a possibilidade de desfecho indesejado à esperança por dias melhores — é essencial para formular um plano de cuidados alinhado às prioridades do paciente.
A predição também impacta diretamente os familiares, que podem se preparar emocionalmente, participar ativamente do cuidado e organizar despedidas que respeitem os desejos do paciente. Por isso, profissionais de saúde devem deixar de evitar esse tema: a ausência de estimativas realistas contribui para cuidados descoordenados, sofrimento prolongado e arrependimentos evitáveis.
O que o paciente quer saber?
Nem todos os pacientes querem saber exatamente quanto tempo lhes resta — mas a maioria deseja ter alguma noção do que está por vir. Em geral, preocupam-se com os sintomas, a funcionalidade e o impacto da doença sobre os seus entes queridos. De maneira didática, essas preocupações costumam ser agrupadas nos chamados 5 D’s:
Disease (doença): receios quanto à progressão, recorrência e sintomas da doença;
Death (morte): questionamentos sobre o risco de morte ou estimativas de sobrevida;
Disability/Discomfort (incapacidade/desconforto): dúvidas sobre limitações funcionais, reabilitação e controle de sintomas;
Drug (medicamentos): expectativas e temores quanto aos efeitos adversos dos tratamentos;
Dollars (custos): preocupações sobre o impacto financeiro da doença para si e para a família.
Pesquisas qualitativas mostram que, mais do que datas, os pacientes buscam previsibilidade: desejam saber se ficarão acamados, se precisarão de oxigênio, se perderão a capacidade de se alimentar. São essas as perguntas que devemos escutar — e responder — com presença e sensibilidade. Vale lembrar que a importância dada a cada um desses aspectos varia conforme o contexto cultural, familiar e individual.
Por isso, uma pergunta como “Você gostaria de conversar sobre o que esperar daqui pra frente?” abre espaço para a elaboração destas preocupações. Cabe também perguntar se há informações que o paciente prefira não saber — esse respeito à autonomia fortalece a aliança terapêutica e sustenta um processo genuíno de tomada de decisão compartilhada.
Quando o paciente expressa o desejo de não receber informações ou de não participar das decisões, isso deve ser respeitado. No entanto, é importante investigar quais sofrimentos ou receios fundamentam essa recusa, acolhendo-os com compaixão. Além disso, deve-se estimular que ele nomeie um procurador para cuidados de saúde — alguém de sua confiança, com conhecimento de sua biografia — para representá-lo nas decisões futuras, caso necessário.
Momentos chave para predição
A predição deve ser revisitada periodicamente, mas alguns marcos exigem atenção especial. O primeiro deles é o momento do diagnóstico, que já envolve a comunicação de uma notícia sensível: a existência de uma doença ameaçadora à vida. Ainda que a prioridade imediata possa ser informar a condição e discutir possibilidades terapêuticas, é adequado abordar o prognóstico individual já nesse momento — ou, se necessário, em consulta subsequente — sobretudo quando se trata de doenças com potencial de rápida instabilização.
Outro marco importante é a mudança de estratégia terapêutica ou a dificuldade no controle de sintomas. Ambos os cenários costumam sinalizar progressão da doença ou resposta inadequada ao tratamento vigente — fatores de mau prognóstico. Nomeá-los explicitamente permite revisar o plano de cuidados à luz da nova realidade clínica. Da mesma forma, quando a equipe percebe que o paciente pode não se beneficiar de terapia modificadora de doença, isso representa uma oportunidade essencial para rediscutir o prognóstico e realinhar os objetivos do cuidado.
O declínio funcional também deve ser monitorado com atenção. Reduções progressivas no PPS (Palliative Performance Scale), especialmente abaixo de 50%, estão associadas à proximidade da terminalidade em diversas condições — em especial nas doenças oncológicas, outro momento em que o prognóstico deve ser compartilhado com o paciente.
Como realizar a predição
Realizar a predição de forma compassiva exige escuta atenta e sensibilidade. O primeiro passo é compreender o que o paciente já sabe sobre sua condição, pois não faz sentido discutir prognóstico quando, por exemplo, o diagnóstico ainda não está claro. É importante lembrar que, embora tenha direito a todas as informações sobre seu quadro, o paciente não é obrigado a conhecer ou participar de todos os detalhes do processo de adoecimento e tratamento. Suas preferências informacionais também devem ser acolhidas e respeitadas.
A comunicação do prognóstico deve ser feita em linguagem simples, adequada ao vocabulário utilizado pelo próprio paciente. Preocupações específicas devem ser respondidas com honestidade e delicadeza. Diante de perguntas diretas, não há necessidade de respostas imediatas: investigar as motivações por trás da pergunta pode ajudar a oferecer uma resposta mais cuidadosa e alinhada ao vínculo estabelecido. No entanto, essa escuta ativa não deve ser usada como justificativa para evitar respostas — elas devem ser dadas, com sensibilidade e responsabilidade.
Evita-se o uso de previsões exatas; em vez disso, utilizam-se ordens de grandeza (dias, semanas, meses), de acordo com a necessidade e o desejo do paciente. Mais importante do que isso é reafirmar o compromisso com o cuidado contínuo — independentemente do tempo estimado.
É fundamental reconhecer a incerteza sem abandonar o paciente: “Não temos como saber com exatidão, mas o que posso dizer é que estamos em uma fase em que o tempo pode ser curto — possivelmente de algumas semanas. Estaremos com você em cada passo.”
Modo de usar:
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Explore o que o paciente já sabe: Antes de abordar o prognóstico, pergunte o que ele entende sobre sua condição atual. Isso evita confusões e respeita o ritmo do paciente.
Use linguagem simples e compassiva: Evite termos técnicos e traduza as estimativas em ordens de grandeza compreensíveis (dias, semanas, meses), conforme o desejo de informação do paciente.
Convide à conversa, não à resposta: Perguntas abertas como “Você gostaria de conversar sobre o que esperar daqui pra frente?” promovem segurança e autonomia.
Revisite a predição periodicamente: Mudanças clínicas, declínio funcional ou transições de cuidado são momentos propícios para retomar o diálogo sobre o futuro, ajustando o plano de cuidados.
Dica da especialista 🤌🏻
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💡 Não é preciso ter todas as respostas para comunicar o prognóstico com qualidade. O essencial é estar disponível e presente. Em muitos casos, o paciente não se apega às palavras exatas, mas sim à forma como foram ditas. Demonstre que ele não está só, mesmo diante da incerteza. Em Cuidados Paliativos, comunicar é cuidar — e a escuta, muitas vezes, é o primeiro passo do alívio. O artigo “The cultivation of prognostic awareness through the provision of early palliative care in the ambulatory setting: a communication guide” explora o conceito de consciência prognóstica de forma particularmente didática. Recomendo fortemente sua leitura como complemento a esta #PP.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Autonomia: Princípio bioético que define a capacidade do sujeito de se autodeterminar, decidir por si próprio. Consciência prognóstica: Entendimento do paciente e/ou familiar sobre o curso natural da doença e os desfechos possíveis e mais prováveis. Demanda não apenas o conhecimento do prognóstico, mas também a integração psíquica desta informação pelo o indivíduo. Doença ameaçadora à vida: Condição de saúde de qualquer etiologia, ativa, grave, progressiva e que causa sofrimento multidimensional ao paciente, seus familiares e cuidadores. Evidência científica: Elemento obtido através de metodologia científica que apoia ou refuta uma hipótese. Na Medicina, fundamenta decisões e práticas, garantindo que intervenções, tratamentos e condutas sejam pautados em conhecimento comprovado e reprodutível, minimizando vieses e garantindo maior segurança e eficácia. Conforme pirâmide hierárquica dos tipos de estudos, tem seu nível classificado de 1 a 6 e sua qualidade classificada em A, B, C ou D, de acordo com o sistema GRADE. Objetivo do cuidado: Objetivo a ser alcançado com o tratamento, definido com base nos valores e preferências do paciente por meio de um processo de tomada de decisão compartilhada. Exemplos de objetivos do cuidado incluem: "cura da doença", "prolongamento da vida a qualquer custo", "manutenção ou melhoria da funcionalidade", "prolongamento da vida sem medidas que causem sofrimento", "promoção da qualidade de vida" e "uma boa morte". Palliative Performance Scale (PPS): Escala que avalia a funcionalidade e o estado clínico geral de pacientes em Cuidados Paliativos. Desenvolvida pelo Victoria Hospice Society, ela varia de 0% (morte) a 100% (estado pleno de saúde), em incrementos de 10%, considerando cinco dimensões: deambulação, atividade e evidência de doença, capacidade de autocuidado, ingestão oral e nível de consciência. Plano de cuidados: Estratégia através da qual o objetivo de cuidado será alcançado. É sempre individualizado, conforme fase da doença, valores e biografia do paciente. Predição: Ato de comunicar o prognóstico. Procurador para cuidados de saúde: Pessoa nomeada por outra para tomar decisões sobre seus cuidados de saúde quando esta não puder mais expressar sua vontade. Cabe ao procurador esclarecer os desejos do paciente diante de situações não previstas no testamento vital, sendo sua posição considerada a opinião leiga de maior relevância no processo decisório — exceto, é claro, pela própria vontade do paciente previamente expressa no testamento vital. Prognosticação: Processo clínico de estimar e comunicar a trajetória provável de uma doença, incluindo tempo de sobrevida, funcionalidade e complicações esperadas, com base em dados clínicos, experiência profissional e ferramentas prognósticas. Envolve as etapas de previsão e predição. Prognóstico: Previsão do curso ou do resultado provável de uma doença, condição ou tratamento, que estima a trajetória futura da saúde de um indivíduo, com espectro amplo, não limitado à estimativa de sobrevida. Sobrevida: Tempo de vida após um determinado marco temporal - por exemplo, sobrevida após diagnóstico de uma doença ou alta hospitalar. Terapia modificadora de doença: Todo tratamento que modifica o curso de uma doença, com objetivo de aumento de sobrevida e, idealmente, melhora na qualidade de vida. Não é sinônimo de terapia curativa. Terminalidade: Termo que define o último período da vida e fase mais avançada de uma doença, em que a saúde não pode ser recuperada. É marcado especialmente pelo declínio funcional do paciente e pela incurabilidade da doença. Na literatura, está associado aos 6 últimos meses de vida, embora cada vez mais seja entendido não como um marcador de tempo, mas de estado de saúde. A maior parte da literatura considera terminalidade como sinônimo de fim de vida, embora algumas correntes façam distinção entre esses dois termos. Na Escola de Habilidades Paliativas, esses termos são utilizados como sinônimos. Tomada de decisão compartilhada: Processo colaborativo em que profissionais de saúde, pacientes e — quando apropriado — seus familiares ou representantes constroem juntos as decisões sobre o cuidado, integrando evidências clínicas (conhecimento técnico) com os valores, preferências e objetivos de vida do paciente.
Referências bibliográficas
Tourinho F. E-pali 2: prognóstico e funcionalidade. [S.l.: s.n.], 2025
Jackson VA, Jacobsen J, Greer JA, Pirl WF, Temel JS, Back AL. The cultivation of prognostic awareness through the provision of early palliative care in the ambulatory setting: a communication guide. J Palliat Med. 2013;16(8):894-900.