Categorias: Tomada de decisão, Resolução de conflitos Autores: Josimário Silva, médico paliativista e bioeticista e Juliana Martins, médica clínica e paliativista Publicado em: 02/04/2025
Contexto
A prática de Cuidados Paliativos exige tomadas de decisões mais precisas, pois o tempo, em muitas situações, é exíguo e nem sempre permite uma segunda tentativa. Ao romper com o modelo estritamente biológico e considerar o ser humano em sua totalidade - com biografia, valores e preferências -, tomar decisões em Cuidados Paliativos exige não apenas conhecimento técnico, mas uma habilidade ética refinada, especialmente no contexto de fim de vida.
As decisões nesse cenário costumam ser angustiantes, envolvem ambiguidade e, por tratarem de uma fase irreversível, precisam ser as melhores possíveis, - não apenas do ponto de vista clínico, mas também nas dimensões humanas que ultrapassam a condição biológica.
Esta edição da #PP apresenta o método de deliberação moral como instrumento estruturado para apoiar tomadas de decisões complexas.
Dilema X Problema
Decisões clínicas, em geral, são orientadas pela história médica do paciente — ou seja, centradas em aspectos orgânicos. Com o tempo, a experiência profissional constrói uma bagagem que pode reforçar a crença de que as escolhas feitas são, invariavelmente, as mais adequadas. Entretanto, com as transformações sociais, a relação entre profissionais de saúde, pacientes e famílias também muda — e o processo decisório passa a assumir novas configurações.
Hoje, pacientes e familiares têm papel mais ativo e participativo nas decisões de cuidado, tornando-se protagonistas. Com isso, desejos, valores e crenças entram em cena, podendo gerar tensões no processo assistencial. Não raro, essas divergências são vividas como barreiras — colocando, de um lado, a equipe de saúde, e de outro, o paciente e sua família.
A percepção de estar diante de um “dilema” — ou seja, da ideia dicotômica de que há apenas uma resposta correta entre duas opções possíveis — faz emergir o sofrimento moral entre profissionais que atuam com Cuidados Paliativos. Nessas situações, a angústia de “escolher certo” pode comprometer tanto a saúde emocional da equipe quanto a qualidade da decisão clínica.
Em cenários complexos, habituais em Cuidados Paliativos - é essencial ampliar o olhar, buscar apoio e considerar múltiplas perspectivas. Todos os envolvidos em uma determinada situação clínica podem contribuir com sua visão dos fatos - nenhuma percepção deve ser descartada.
Ao adotar uma abordagem "problemática" - que reconhece a complexidade da realidade -, o método de deliberação moral permite o desenvolvimento de habilidades para uma assistência centrada em valores. Trata-se de um recurso da ética prática, que favorece decisões mais conscientes e cuidadosas à beira-leito. É um itinerário que orienta a escolha de ações prudentes, diligentes e responsáveis.
O método
A deliberação moral é um método que busca a decisão mais prudente entre as possíveis. Para isso, quatro etapas devem ser seguidas, de forma sequencial:
Etapa 1 - Deliberação sobre os fatos: apresentar os dados objetivos — caso clínico, aspectos biológicos, intervenções já realizadas —, bem como os aspectos sociais e familiares envolvidos.
Etapa 2 - Deliberação sobre os valores: identificar os problemas éticos, especialmente o problema ético fundamental. Este pode ser formulado como uma pergunta do tipo: “Deveria X, mesmo que Y?”. Por exemplo: “Deveria a equipe da UTI, frente a risco de vida de João, testemunha de Jeová, instituir hemotransfusão, mesmo que isso implique risco de exclusão social?”. Aqui também se explicitam os valores em conflito.
Etapa 3 - Deliberação sobre os deveres: listar os cursos de ação possíveis, classificando-os como: a) extremos; b) intermediários; e c) ótimos. O objetivo é eleger aquele que melhor equilibra prudência e responsabilidade.
Etapa 4 - Deliberação sobre as responsabilidades: aplicar as três provas de consistência à alternativa escolhida: legalidade (está de acordo com a legislação?), publicidade (poderia ser defendida publicamente?), e temporalidade (seria mantida mesmo com mais tempo de análise?). Essas provas validam a consistência da decisão ética.
Onde e por quem?
A bioética clínica valoriza a ética da vida prática — ou seja, aquela aplicável à beira-leito. Por isso, o método de deliberação moral deve ser utilizado em casos reais, preferencialmente em discussões com equipes multidisciplinares. Pode ser adotado em comitês de bioética clínica — mas seu uso não deve se restringir a esses espaços formais.
Apropriar-se do método é um passo essencial para os profissionais que enfrentam conflitos morais na rotina assistencial. A reflexão ética estruturada ajuda a reduzir o sofrimento moral, ao garantir que a decisão foi tomada com base em uma análise honesta, cuidadosa e responsável. Esse cuidado ético é, por si só, uma forma de proteção ao próprio profissional.
Modo de usar:
Descubra como aplicar esta pílula paliativa de forma prática em seu dia a dia.
Evite decidir sozinho em situações complexas: delibere antes de agir;
Não hierarquize valores: todos merecem consideração, mesmo que não coincidam com os seus;
Entenda o cenário clínico: só conhecendo a realidade é possível proteger os valores implicados.
Dica da especialista 🤌🏻
Você já tem o e-pali ou costuma ler A incrível newsletter paliativa? Então já sabe que essa é uma seção especial: aqui compartilhamos insights a partir da nossa visão e experiência profissional.
💡Não existe fato sem valor. Os fatos clínicos estão impregnados de significados. Reconhecer isso demonstra maturidade ética. Ao cuidar de alguém, busque identificar os valores dessa pessoa. Examine o cenário clínico com atenção para identificar os valores envolvidos. E, ao encontrar conflitos, delibere. Essa é a melhor forma de oferecer um cuidado verdadeiramente centrado na pessoa.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Deliberação moral: Método ético-clínico proposto pelo bioeticista espanhol Diego Gracia, utilizado para orientar decisões em contextos clínicos complexos e com valores em conflito. Fundamenta-se na análise sequencial de fatos, valores, deveres e responsabilidades, com o objetivo de identificar a ação mais prudente a ser tomada. Fim de vida: Termo que define o último período da vida e fase mais avançada de uma doença, em que a saúde não pode ser recuperada. É marcado especialmente pelo declínio funcional do paciente e pela incurabilidade da doença. Na literatura está associado aos 6 últimos meses de vida, embora cada vez mais seja entendido não como um marcador de tempo, mas de estado de saúde. Alguns locais utilizam este termo como um período de dias a semanas que antecede a morte. Na Escola de Habilidades Paliativas, utilizamos como sinônimo de terminalidade, conforme é mais frequente em literatura. Sofrimento moral: Sofrimento psicológico experimentado quando uma pessoa percebe que não pode agir de acordo com seus próprios valores éticos. Em profissionais de saúde, manifesta-se frequentemente como angústia diante da sensação de estar oferecendo um cuidado inadequado, incoerente com o que considera ser moralmente correto. Pode ter como causa obstáculos institucionais — como escassez de recursos, sobrecarga de trabalho ou políticas restritivas —, mas também pode surgir em contextos de dilemas éticos, quando há mais de uma opção possível e valores em conflito, sem uma resposta claramente certa ou errada.
Referências bibliográficas
Silva, J. Bioética. Um olhar bioético de quem cuida do final de vida. Editora Nova Presença. Olinda. PE 2017. 260p.
Silva, J. Conflitos Morais em Bioética Clínica. Editora Plenavoz (MG). 2022. 222p.
Silva. J. Deliberação Moral e Tomada de Decisão em Bioética Clínica. Casos clínicos. Editora Plenavoz (MG). Segunda edição. 2024. 165p.
Gracia, D. Bioética Mínima. Editora Triacastela. Madrid. 2019. 185p.
Zoboli, E. L. C. P. (2012). Bioética clínica na diversidade: a contribuição da proposta deliberativa de Diego Gracia. Bioethikos, 6( 1), 49-57.
Gostou muito de ler pílulas paliativas,as referências são atualizadas e isso me ajuda muito na realização do meu TCC.