Categorias: Fundamentos Autor(a): Lucas Olivieri, cirurgião geral e paliativista Publicado em: 16/07/2025
Contexto
O perfil do paciente cirúrgico atual é altamente heterogêneo: abrange desde indivíduos submetidos a cirurgias eletivas simples até aqueles com multimorbidades, funcionalidade reduzida e doenças oncológicas em fases avançadas — frequentemente com múltiplas reabordagens cirúrgicas e internações em UTI. Em qualquer situação cirúrgica em que a vida esteja em risco — seja por uma condição aguda ou por doenças crônicas descompensadas —, é fundamental analisar o caso à luz dos Cuidados Paliativos. A evolução das técnicas cirúrgicas não ocorreu isoladamente. Ela exige, cada vez mais, competências ampliadas do cirurgião contemporâneo — entre elas, a capacidade de reconhecer o sofrimento, comunicar-se de forma eficaz e alinhar o cuidado às prioridades do paciente. Por isso, integrar os Cuidados Paliativos à prática cirúrgica crítica deixou de ser opcional: tornou-se uma necessidade ética, técnica e humana — e este é o tema da nossa #PP de hoje.
Um pouco de história
Observar a medicina por sua trajetória histórica enriquece nossa compreensão sobre como práticas e valores evoluíram — e isso se aplica especialmente à Cirurgia. A princípio, a associação entre Cirurgia e Cuidados Paliativos pode parecer improvável para alguns. No entanto, ao revisitar a história, essa relação revela-se natural.
Na medicina ocidental, a Cirurgia sempre esteve associada à dor. Desde os tempos antigos até a Idade Média, procedimentos cirúrgicos — como lancetar abscessos ou extrair dentes — eram realizados pelos chamados “barbeiros-cirurgiões”, figuras que também cuidavam dos cortes de cabelo e barba da população. Durante séculos, o sofrimento físico era uma certeza, sendo o paciente submetido a dores excruciantes durante os procedimentos.
Esse cenário mudou em 16 de outubro de 1846, quando o dentista William Morton administrou éter com sucesso a um paciente submetido à retirada de um tumor mandibular. Pela primeira vez, o que por séculos parecia um devaneio esperançoso havia se tornado realidade: um procedimento cirúrgico sem dor.
O avanço anestésico foi o ponto de partida para o rápido desenvolvimento técnico da Cirurgia. Operar passou a ser o foco principal do cirurgião e, por décadas, esse domínio técnico foi suficiente. No entanto, a complexidade crescente dos pacientes — e da própria medicina — exigiu um novo olhar. Hoje, não basta operar bem: é preciso compreender o paciente em sua totalidade. O cuidado passou a ser integral, biopsicossocial — e o cirurgião, inevitavelmente, parte dessa transformação.
Cuidado Paliativo em Cirurgia
O Cuidado Paliativo cirúrgico pode ser definido como a abordagem voltada ao alívio do sofrimento e à promoção da qualidade de vida de pacientes com condições cirúrgicas graves e potencialmente fatais — independentemente do estágio da doença ou da existência de terapias curativas. Trata-se de um cuidado integral, centrado na pessoa, e não apenas na patologia. O objetivo é encontrar a melhor forma de cuidar do paciente, respeitando seus valores, crenças e preferências. Ainda é comum — inclusive entre cirurgiões — a ideia equivocada de que o Cuidado Paliativo e o ato cirúrgico seriam mutuamente excludentes. Essa visão desatualizada associa os Cuidados Paliativos exclusivamente ao fim de vida e à ausência de tratamentos modificadores da doença. No entanto, cresce o reconhecimento de que o Cuidado Paliativo deve atuar de forma paralela e integrada ao tratamento cirúrgico, desde o diagnóstico de uma condição grave até, quando necessário, o acompanhamento de familiares enlutados. A literatura internacional vem avançando nesse sentido, com evidências de que essa abordagem melhora desfechos clínicos e psicossociais, reduz procedimentos desproporcionais e orienta o cuidado de acordo com os objetivos do próprio paciente — sendo, por isso, recomendada por diversas entidades cirúrgicas ao redor do mundo. Apesar dos avanços conceituais, a implementação prática desse modelo ainda enfrenta obstáculos. A formação cirúrgica, em geral, não contempla um ensino robusto em Cuidados Paliativos. Em um levantamento realizado nos Estados Unidos (2017), constatou-se que cirurgiões oncológicos tiveram, em média, apenas 10 horas de treinamento na área — contra 30 horas para oncologistas clínicos e 50 horas para intensivistas. Alarmantemente, 25% dos cirurgiões relataram nunca ter recebido qualquer formação específica. É urgente incorporar os princípios dos Cuidados Paliativos nos programas de residência em Cirurgia, formando profissionais não apenas tecnicamente competentes, mas também aptos a oferecer um cuidado verdadeiramente completo.
Competências paliativas e o cirurgião
A literatura atual sobre Cuidados Paliativos em Cirurgia destaca um conjunto de competências fundamentais que o cirurgião moderno precisa desenvolver para oferecer um cuidado verdadeiramente centrado na pessoa. São habilidades que ampliam sua atuação para além da técnica operatória, permitindo uma prática mais ética, segura e compassiva.
A primeira dessas competências é o conhecimento prognóstico. O cirurgião deve compreender o curso natural das doenças cirúrgicas graves e estar familiarizado com ferramentas prognósticas específicas dos Cuidados Paliativos. Isso o ajudará a estimar riscos, orientar decisões e alinhar o cuidado aos objetivos do paciente.
A segunda é a comunicação empática e efetiva. Isso envolve escuta ativa, acesso aos valores e preferências da pessoa, transmissão clara e sensível do prognóstico, bem como acolhimento das emoções envolvidas. Essas habilidades não são acessórias: são a base do vínculo terapêutico, da confiança e da sintonia com o paciente e seus familiares.
Com essas ferramentas, o cirurgião torna-se apto a praticar a tomada de decisão compartilhada, na qual as intervenções — cirúrgicas ou não — são ponderadas à luz dos objetivos do paciente, e não apenas de critérios técnico-biológicos. Essa abordagem evita tratamentos desproporcionais e trajetórias de cuidado desalinhadas com aquilo que realmente importa para quem está em sofrimento.
Quando essas competências comunicacionais estão ausentes, o impacto emocional sobre o profissional pode ser significativo. Cirurgiões, com frequência, internalizam a responsabilidade por complicações previsíveis — sobretudo quando os desfechos são desfavoráveis. Trata-se da chamada síndrome da segunda vítima, uma forma de sofrimento moral silencioso, mas comum. Estratégias como terapia cognitivo-comportamental e mindfulness têm seu valor, mas um cuidado baseado nos princípios paliativos permite compreender que a escolha foi feita de forma ética e alinhada aos desejos do paciente — o que suaviza o peso emocional das decisões clínicas.
Outra competência essencial é a capacidade de reconhecer a proximidade da morte e comunicar esse cenário com clareza e sensibilidade. Explicar o que esperar do processo de morrer, acolher dúvidas e emoções, orientar sobre os eventos fisiológicos que se aproximam: tudo isso faz parte do cuidado. Quando esse apoio não é oferecido, os familiares frequentemente vivenciam sofrimento psíquico intenso, com risco aumentado de ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático.
Além disso, o cirurgião precisa dominar o manejo de sintomas, mesmo em contextos não operatórios. É sua responsabilidade oferecer alívio à dor, à dispneia, às náuseas, ao prurido e a outros sintomas comuns em pacientes cirúrgicos graves — especialmente no fim de vida. Isso exige familiaridade com o uso de analgésicos, sobretudo opioides, e compreensão das múltiplas dimensões da dor: física, psíquica, social e espiritual.
Merece destaque, ainda, a cirurgia paliativa — intervenção cujo objetivo é exclusivamente o alívio de sintomas, sem finalidade curativa. Ainda que esse tipo de procedimento exija discussões próprias, é essencial que o cirurgião reconheça sua legitimidade e saiba indicá-lo adequadamente.
Nenhum cirurgião deve cuidar de forma isolada. Atuar em equipe interdisciplinar e contar com o apoio dos Cuidados Paliativos especializados amplia a segurança, favorece o cuidado integral e auxilia na condução de dilemas clínicos e éticos complexos.
O resultado desse aprendizado e prática em Cuidados Paliativos ultrapassa a esfera do cuidado ao paciente. Ao se debruçar sobre questões relacionadas ao fim de vida, o próprio cirurgião pode experimentar transformações profundas, de ordem psicológica e espiritual — refletindo sobre a própria existência e ressignificando atitudes, escolhas e visões de mundo. Aprender Cuidados Paliativos não apenas qualifica o cuidado cirúrgico, mas também é um poderoso catalisador de crescimento pessoal e profissional.
“Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você”, Friedrich Nietzsche.
Modo de usar:
Descubra como aplicar esta pílula paliativa de forma prática em seu dia a dia.
Inclua os princípios paliativos na avaliação cirúrgica: diante de um paciente grave, reflita sobre prognóstico, valores, preferências e qualidade de vida antes de decidir por uma abordagem invasiva.
Comunique-se com intenção e empatia: pratique escuta ativa e transmita informações difíceis de forma clara e compassiva, sempre acolhendo as emoções envolvidas.
Compartilhe decisões: envolva o paciente e seus familiares no processo de escolha terapêutica, especialmente em contextos de incerteza ou alto risco.
Busque o apoio da equipe de Cuidados Paliativos: consulte colegas especialistas sempre que surgirem dilemas éticos, sintomas de difícil controle ou situações de fim de vida.
Dica do especialista 🤌🏻
Você já tem o e-pali ou costuma ler A incrível newsletter paliativa? Então já sabe que essa é uma seção especial: aqui compartilhamos insights a partir da nossa visão e experiência profissional.
💡 De todas as competências que o conhecimento em Cuidados Paliativos pode agregar ao cirurgião, acredito que a mais valiosa na condução dos casos seja a capacidade de conduzir adequadamente uma tomada de decisão compartilhada. Essa habilidade permite selecionar, com maior precisão, os procedimentos mais adequados a cada situação, além de tornar a trajetória do paciente e de sua família mais humanizada e, em última análise, mais significativa.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Ansiedade: Estado afetivo caracterizado por apreensão, tensão e antecipação de perigo, com componentes emocionais, físicos e cognitivos. Pode ser uma resposta adaptativa a situações de estresse, mas torna-se patológica quando é persistente, desproporcional e interfere no funcionamento cotidiano. Cirurgia paliativa: Qualquer procedimento cirúrgico não curativo que tenha como objetivo principal o alívio de sintomas e/ou melhora da qualidade de vida de pacientes com doença ameaçadora à vida. Na literatura, há descrição de cirurgia paliativa como também aquela que é realizada de forma profilática para evitar o surgimento de um sintoma. Esta classificação é controversa e, na Escola de Habilidades Paliativas, não a utilizamos. Depressão: Transtorno psiquiátrico caracterizado por humor deprimido e/ou perda de prazer (anedonia) de forma persistente por pelo menos duas semanas. Dispneia: Sensação subjetiva de dificuldade ou desconforto para respirar, com intensidade variável. Resulta da interação de fatores fisiológicos, psicológicos, sociais e ambientais, podendo desencadear respostas físicas e emocionais. Dor: De acordo com a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP), é “uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada a uma lesão tecidual real ou potencial, ou descrita nos termos de tal lesão”. Ferramenta prognóstica: Instrumento clínico usado para estimar desfechos futuros, como mortalidade ou declínio funcional. Pode ser uma escala (ex.: PPS) ou um modelo preditivo (ex.: PPI), auxiliando no planejamento de cuidados e na tomada de decisões. Fim de vida: Termo que define o último período da vida e fase mais avançada de uma doença, em que a saúde não pode ser recuperada. É marcado especialmente pelo declínio funcional do paciente e pela incurabilidade da doença. Na literatura está associado aos 6 últimos meses de vida, embora cada vez mais seja entendido não como um marcador de tempo, mas de estado de saúde. Alguns locais utilizam este termo como um período de dias a semanas que antecede a morte. Na Escola de Habilidades Paliativas, utilizamos como sinônimo de terminalidade, conforme é mais frequente em literatura. Funcionalidade: Capacidade de uma pessoa realizar, com ou sem apoio, atividades físicas, cognitivas, sociais e afetivas do cotidiano. Em Cuidados Paliativos, é um marcador clínico importante para avaliar independência e orientar o plano de cuidados. Pode ser medida por escalas como o Índice de Barthel, Escala de Katz e PPS. Mindfulness: Também chamado de “atenção plena”, é a prática de focar intencionalmente no momento presente, com consciência e sem julgamentos. Em Cuidados Paliativos, pode aliviar o sofrimento e promover serenidade diante de sintomas e experiências difíceis. Multimorbidade: Presença de duas ou mais doenças crônicas em um mesmo indivíduo. Náusea: Sintoma caracterizado por vontade de vomitar, podendo ou não ser seguida de vômito. Opioide: Termo que engloba os alcaloides derivados da papoula (*Papaver somniferum*), seus análogos sintéticos e as substâncias endógenas que se ligam aos receptores opioides distribuídos por todo o corpo. Como medicamentos, são utilizados principalmente para o controle da dor, mas também podem ser eficazes no alívio de outros sintomas. Prurido: Sensação incômoda na pele que provoca vontade de coçar. Prognóstico: Previsão do curso ou do resultado provável de uma doença, condição ou tratamento, que estima a trajetória futura da saúde de um indivíduo, com espectro amplo, não limitado à estimativa de sobrevida. Qualidade de vida: De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) é “a percepção que um indivíduo tem da sua posição na vida. Esta percepção é feita em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações, e no contexto da cultura e dos sistemas de valores em que vive.“ Síndrome da segunda vítima: Sofrimento emocional vivido por profissionais de saúde após um evento adverso com um paciente, marcado por sentimentos como culpa, fracasso e ansiedade, com impacto na saúde mental. Sofrimento: Experiência repulsiva e sua emoção negativa correspondente. Pode ser de natureza física, psicoemocional, social e/ou espiritual. Sofrimento moral: Sofrimento psicológico experimentado quando uma pessoa percebe que não pode agir de acordo com seus próprios valores éticos. Em profissionais de saúde, manifesta-se frequentemente como angústia diante da sensação de estar oferecendo um cuidado inadequado, incoerente com o que considera ser moralmente correto. Pode ter como causa obstáculos institucionais — como escassez de recursos, sobrecarga de trabalho ou políticas restritivas —, mas também pode surgir em contextos de dilemas éticos, quando há mais de uma opção possível e valores em conflito, sem uma resposta claramente certa ou errada. Terapia modificadora de doença: Todo tratamento que modifica o curso de uma doença, com objetivo de aumento de sobrevida e, idealmente, melhora na qualidade de vida. Não é sinônimo de terapia curativa. Tomada de decisão compartilhada: Processo colaborativo em que profissionais de saúde, pacientes e — quando apropriado — seus familiares ou representantes constroem juntos as decisões sobre o cuidado, integrando evidências clínicas (conhecimento técnico) com os valores, preferências e objetivos de vida do paciente. Transtorno de estresse pós-traumático: Transtorno psiquiátrico caracterizado por reações intensas, desagradáveis e disfuncionais após vivência de evento traumático, como revivescências, hipervigilância e evitação persistente de estímulos associados ao trauma.
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