Categorias: Fundamentos Autor(a): Yanne Amorim, pneumologista e paliativista Publicado em: 09/07/2025
Contexto
A introdução precoce dos Cuidados Paliativos pode melhorar a funcionalidade e a qualidade de vida de pacientes com doenças crônicas, como as respiratórias. A inabilidade em manejar sintomas como dor e dispneia em doentes graves, associada a falhas de comunicação, contribui para o aumento do sofrimento e para o desgaste nas relações entre pacientes, familiares e profissionais de saúde. Em Pneumologia, os Cuidados Paliativos têm como foco principal o alívio do sofrimento de pacientes com doenças respiratórias crônicas e ameaçadoras da vida. Isso inclui o manejo dos sintomas respiratórios, o suporte nas dimensões emocional, social e espiritual, o planejamento antecipado de cuidados e a oferta de cuidados de fim de vida. Nesta #PP, discutiremos a abordagem dos Cuidados Paliativos na Pneumologia.
Por que e para quem?
As doenças pulmonares avançadas, de etiologias diversas, apresentam um curso clínico marcado por exacerbações imprevisíveis, declínio funcional progressivo e elevada carga sintomática, em especial a dispneia.
Estudos demonstram que pacientes com doenças respiratórias avançadas apresentam sintomas semelhantes aos de pacientes oncológicos em fim de vida, como dor e dispneia, mas ainda recebem menos acesso aos Cuidados Paliativos.
A experiência subjetiva de “falta de ar” é frequentemente descrita como uma sensação de ameaça existencial, com impacto significativo na qualidade de vida dos pacientes e na sobrecarga de seus cuidadores. A integração precoce dos Cuidados Paliativos no manejo dessas condições não apenas contribui para o alívio de sintomas, mas também amplia a compreensão do sofrimento total e favorece a tomada de decisão compartilhada.
A literatura atual, incluindo consensos internacionais e diretrizes nacionais, reconhece os benefícios dessa abordagem interdisciplinar e longitudinal para pacientes com doenças respiratórias crônicas avançadas, tais como:
DPOC – GOLD III e IV
Fibrose pulmonar idiopática e outras pneumopatias intersticiais fibrosantes
Câncer de pulmão
Hipertensão pulmonar em classes III-IV
Bronquiectasias extensas
Insuficiência respiratória crônica dependente de oxigênio ou VNI.
Critérios para acionamento da equipe especializada
É preciso desmistificar a ideia de que os Cuidados Paliativos só devem ser adotados quando não há mais possibilidade de nenhum outro tratamento. Eles devem estar associados à terapia modificadora de doença desde o diagnóstico, ofertadas pelas equipes de pneumologia, visando à melhora da qualidade de vida e à redução do sofrimento — físico, psicológico, social e espiritual.
A literatura recomenda o acionamento de um time especializado para avaliar o paciente pneumopata grave, mediante alguns critérios clínicos:
Dispneia refratária apesar de tratamento otimizado
Declínio funcional progressivo (ex: mMRC 3; redução de Teste de Caminhada de 6 minutos)
Exacerbações frequentes com internações hospitalares
Necessidade de suporte ventilatório não invasivo prolongado
Candidatura questionável para transplante ou terapias invasivas
Sofrimento psicossocial, medo da morte por asfixia ou isolamento
Abordagem da “dispneia total”
A dispneia na doença pulmonar avançada é mais do que uma sensação física de falta de ar: ela carrega consigo uma sequência de perdas — da funcionalidade, da independência, do convívio social — gerando ansiedade, alterações de humor e sofrimento intenso. Por isso, tem sido descrita como “dispneia total”, em alusão à “dor total” de Cicely Saunders, ao integrar dimensões físicas, emocionais, sociais e existenciais do sofrimento.
O manejo da dispneia deve ser abrangente, combinando medidas farmacológicas e não farmacológicas. Inicia-se com a otimização do tratamento da doença de base, como corticoides e broncodilatadores, e com a oxigenoterapia apenas quando houver hipoxemia documentada. Estratégias como reabilitação pulmonar, ventilação não invasiva com foco em conforto e medidas comportamentais — como conservar energia no dia a dia — são fundamentais para aliviar o sintoma sem acrescentar sofrimento.
Outros recursos incluem o uso precoce e titulado de opioides em dispneia persistente, técnicas complementares como ventilador de mão, leque e mindfulness, além de suporte psicoterápico, espiritual e educativo para o paciente e a família. O cuidado deve ser ativo, contínuo e sensível, buscando aliviar a angústia respiratória com o mesmo rigor com que se trata a dor.
Barreiras e oportunidades
Conversas sobre Cuidados Paliativos em Pneumologia ainda enfrentam barreiras importantes, ligadas não só aos pacientes e cuidadores, mas também às equipes de saúde e ao sistema. A trajetória clínica variável, a dificuldade em prever o prognóstico e em reconhecer necessidades paliativas, somam-se à escassez de equipes especializadas — especialmente no sistema público — e às limitações da cobertura no setor privado. Aspectos culturais e éticos também influenciam a aceitação dessa abordagem, dificultando o enfrentamento da terminalidade.
Como resposta, o planejamento antecipado de cuidados se apresenta como uma grande oportunidade: permite discutir valores, desejos e limites terapêuticos com clareza e respeito. São elementos essenciais desse processo o testamento vital, registros de ordem de não reanimação ou intubação (quando pertinentes), definição do local preferencial de cuidado e morte, e o envolvimento da família — sempre sob a luz da autonomia do paciente.
Abordagem da “dispneia total”
Modo de usar:
Descubra como aplicar esta pílula paliativa de forma prática em seu dia a dia.
Promova o cuidado ativo como um cuidado ampliado: científico, ético e compassivo.
Cultive uma escuta sensível e tecnicamente qualificada diante das necessidades de quem vive com doença pulmonar avançada.
Inclua profissionais de diferentes áreas no acompanhamento contínuo do paciente e de sua família.
Reconheça e comunique, com clareza e acolhimento, o momento de transição do cuidado modificador da doença para o cuidado centrado no conforto.
Dica da especialista 🤌🏻
Você já tem o e-pali ou costuma ler A incrível newsletter paliativa? Então já sabe que essa é uma seção especial: aqui compartilhamos insights a partir da nossa visão e experiência profissional.
💡 Cuidar de pacientes pneumopatas graves exige mais do que ajustar fluxo de oxigênio ou prescrever medicamentos. Exige vínculo, tempo e coragem para sustentar o cuidado mesmo quando não há mais possibilidade de cura.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Abordagem interdisciplinar: Trabalho colaborativo entre profissionais de diferentes áreas para atender às múltiplas necessidades do paciente e da família. Há o compartilhamento de informações e experiências que permite a tomada de decisões conjuntas e a construção de um plano de cuidados colaborativo. Se diferencia do atendimento multidisciplinar por prever a estreita interação entre os membros da equipe, mesmo que não no momento do atendimento. Autonomia: Princípio bioético que define a capacidade do sujeito de se autodeterminar, decidir por si próprio. Cuidados de fim de vida: Cuidados ofertados a pacientes em terminalidade com o propósito de assegurar qualidade de vida até os últimos dias e proporcionar uma morte digna e sem sofrimento. Fazem parte dos Cuidados Paliativos e, por isso, possuem os mesmos princípios, porém não são sinônimos. Dispneia: Sensação subjetiva de dificuldade ou desconforto para respirar, com intensidade variável. Resulta da interação de fatores fisiológicos, psicológicos, sociais e ambientais, podendo desencadear respostas físicas e emocionais. Dor: De acordo com a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP), é “uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada a uma lesão tecidual real ou potencial, ou descrita nos termos de tal lesão”. Dor total: Conceito criado por Dame Cicely Saunders na década de 1960, que propõe que a dor é multidimensional, não apenas física. Esse conceito apresenta o sofrimento como um fenômeno abrangente, envolvendo dimensões físicas, emocionais, sociais e espirituais, que estão interligadas e se influenciam mutuamente. Atualmente, esse entendimento pode ser ampliado para o termo sofrimento total, aplicando-se a outros tipos de sofrimento que, anteriormente, eram considerados exclusivamente físicos, como a dispneia e a náusea. Mindfulness: Também chamado de “atenção plena”, é a prática de focar intencionalmente no momento presente, com consciência e sem julgamentos. Em Cuidados Paliativos, pode aliviar o sofrimento e promover serenidade diante de sintomas e experiências difíceis. Ordem de não reanimação (ONR): Termo que define a opção do paciente por não receber medidas de reanimação cardiopulmonar no caso de parada cardiorrespiratória (PCR). Pode fazer parte de um testamento vital e deve ser registrada em prontuário. Em inglês, diz-se *“Do not resuscitate (DNR)”.* Planejamento antecipado de cuidados: Processo no qual uma pessoa com capacidade decisória preservada, com auxílio da equipe de saúde, expressa e registra seus valores, objetivos e preferências em relação a seus cuidados de saúde, com foco no fim da vida. Tem como objetivo garantir cuidados compatíveis com a biografia da pessoa, devendo ter como produtos finais: 1) A construção de um testamento vital e 2) A escolha de um procurador para cuidados de saúde. Em inglês, diz-se “*Advance Care Planning (ACP)*”, de forma que também pode ser traduzido como planejamento avançado de cuidado. Prognóstico: Previsão do curso ou do resultado provável de uma doença, condição ou tratamento, que estima a trajetória futura da saúde de um indivíduo, com espectro amplo, não limitado à estimativa de sobrevida. Qualidade de vida: De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) é “a percepção que um indivíduo tem da sua posição na vida. Esta percepção é feita em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações, e no contexto da cultura e dos sistemas de valores em que vive.“ Sofrimento: Experiência repulsiva e sua emoção negativa correspondente. Pode ser de natureza física, psicoemocional, social e/ou espiritual. Terapia modificadora de doença: Todo tratamento que modifica o curso de uma doença, com objetivo de aumento de sobrevida e, idealmente, melhora na qualidade de vida. Não é sinônimo de terapia curativa. Terminalidade: Termo que define o último período da vida e fase mais avançada de uma doença, em que a saúde não pode ser recuperada. É marcado especialmente pelo declínio funcional do paciente e pela incurabilidade da doença. Na literatura, está associado aos 6 últimos meses de vida, embora cada vez mais seja entendido não como um marcador de tempo, mas de estado de saúde. A maior parte da literatura considera terminalidade como sinônimo de fim de vida, embora algumas correntes façam distinção entre esses dois termos. Na Escola de Habilidades Paliativas, esses termos são utilizados como sinônimos. Testamento vital: Tipo de diretiva antecipada de vontade (DAV), que versa sobre os tratamentos e preferências de cuidados relacionados à terminalidade da vida. Na Resolução do Conselho Federal de Medicina Nº 1995/2012, é trazida como sinônimo de DAV. Tomada de decisão compartilhada: Processo colaborativo em que profissionais de saúde, pacientes e — quando apropriado — seus familiares ou representantes constroem juntos as decisões sobre o cuidado, integrando evidências clínicas (conhecimento técnico) com os valores, preferências e objetivos de vida do paciente.
Referências bibliográficas
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Sullivan DR, Iyer AS, Enguidanos S, Cox CE, Farquhar M, Janssen DJA, et al. An official ATS/AAHPM/HPNA/SWHPN policy statement: integrating palliative care for people with respiratory disease. Am J Respir Crit Care Med. 2022;206(6):e44–e69.
Philip J, Collins A, Smallwood N, Chang YK, Mo L, Yang IA, et al. Referral criteria to palliative care for patients with respiratory disease: a systematic review. Eur Respir J. 2021;58(4).