Categorias: Fundamentos, Avaliação prognóstica, Tomada de decisão Autor(a): Tatiana Maíta, fisioterapeuta e paliativista Publicado em: 02/07/2025
Contexto
A funcionalidade é um conceito central nos Cuidados Paliativos, pois reflete a capacidade da pessoa para realizar atividades essenciais à sua independência, dignidade e qualidade de vida. Sua avaliação oferece subsídios valiosos para decisões clínicas, planejamento terapêutico e comunicação com o paciente e sua rede de apoio. Em contextos nos quais a cura não é mais possível ou não é o foco principal, preservar a funcionalidade ou retardar seu declínio torna-se uma prioridade terapêutica fundamental.
Relação entre Funcionalidade e Prognóstico
A funcionalidade diz respeito à capacidade de um indivíduo realizar atividades da vida diária e manter sua independência. Já o prognóstico refere-se à estimativa da evolução de uma doença ao longo do tempo, incluindo expectativa de recuperação, progressão e desfecho clínico.
Embora sejam conceitos distintos, funcionalidade e prognóstico mantêm uma relação íntima: pacientes com maior independência funcional tendem a apresentar melhores desfechos, enquanto a perda progressiva da funcionalidade pode sinalizar avanço da doença. A trajetória funcional ao longo do tempo é uma variável-chave para estimar a fase da doença, orientar condutas e alinhar expectativas entre equipe, paciente e rede de apoio.
Estudos apontam que escores de funcionalidade são preditores independentes de sobrevida em diversas condições crônicas, como câncer, insuficiência cardíaca e DPOC. Por isso, sua avaliação é essencial para identificar o momento oportuno de priorizar os Cuidados Paliativos, apoiar decisões sobre o objetivo do cuidado e abordagens de fim de vida.
Enquanto a funcionalidade foca nas capacidades físicas, cognitivas e sociais no presente, o prognóstico baseia-se em dados clínicos – incluindo a funcionalidade – para projetar o curso da doença e orientar decisões futuras. Assim, a funcionalidade se consolida como um dos principais fatores influenciadores do prognóstico.
Ferramentas de Avaliação da Funcionalidade
Diversos instrumentos são utilizados para mensurar a funcionalidade em contextos paliativos. A adoção de escalas padronizadas, validadas e com boa reprodutibilidade entre avaliadores favorece a sistematização das informações e aumenta a confiabilidade dos dados obtidos. A escolha da ferramenta deve considerar a condição clínica do paciente, o ambiente de cuidado e os objetivos da avaliação. A seguir, revisitamos três destas ferramentas:
Palliative Performance Scale (PPS): desenvolvida pela Victoria Hospice Society, no Canadá, em 1996, a PPS foi traduzida para o português e tem como objetivo específico avaliar o estado funcional de pacientes com doenças avançadas, independentemente da etiologia. A escala considera cinco dimensões: capacidade de deambulação, desempenho de atividades, nível de autocuidado, ingestão alimentar e nível de consciência. Os escores variam de 10% a 100%, e valores abaixo de 60% indicam declínio funcional importante. A PPS também permite estimativa de prognóstico e planejamento de cuidados, embora sua acurácia possa variar conforme o contexto clínico e o tipo de doença.
Karnofsky Performance Status (KPS): criada em 1948 por David A. Karnofsky e colegas, no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center (EUA), a KPS é uma escala amplamente utilizada, validada em português, que avalia a capacidade funcional e a qualidade de vida, principalmente em pacientes oncológicos. Os escores também variam de 10% a 100% e se baseiam na independência para as atividades diárias e na necessidade de ajuda. Embora não ofereça uma estimativa precisa de sobrevida, a KPS tem valor prognóstico reconhecido: escores mais baixos costumam se associar a menor expectativa de vida e menor benefício de terapias modificadoras da doença.
Eastern Cooperative Oncology Group (ECOG) Performance Status: a escala ECOG foi criada em 1982 por um consórcio americano de pesquisa em oncologia. Com cinco níveis (0 a 5), classifica pacientes desde completamente ativos (ECOG 0) até totalmente incapacitados e acamados (ECOG 5). Traduzida para o português, é de fácil aplicação e amplamente usada em oncologia. Assim como as demais, apresenta correlação com prognóstico, sendo útil para decisões terapêuticas e elegibilidade para intervenções específicas.
Além da PPS, KPS e da ECOG, outras ferramentas também podem ser utilizadas para avaliação funcional em Cuidados Paliativos, como o Índice de Katz, a Medida de Independência Funcional (MIF) e o Índice de Barthel. Embora sejam mais comuns em contextos de reabilitação ou avaliação geriátrica, essas escalas podem complementar a compreensão sobre a independência do paciente nas atividades da vida diária. A escolha da ferramenta deve considerar o contexto clínico e fase da doença, os objetivos do cuidado e a familiaridade da equipe com o instrumento.
Funcionalidade e Reabilitação Paliativa
A reabilitação paliativa tem como foco preservar e promover a funcionalidade do paciente, dentro dos limites impostos pela doença. Parte-se do princípio de que todas as pessoas, independentemente do prognóstico, podem se beneficiar de intervenções voltadas à manutenção da independência, alívio de sintomas e melhora da qualidade de vida.
A avaliação funcional permite traçar metas terapêuticas individualizadas e realistas: para alguns, recuperar a capacidade de caminhar até o banheiro; para outros, conseguir sentar-se à mesa com a família. O objetivo não é restaurar a função anterior ao adoecimento, mas sim manter ou recuperar ao máximo a independência funcional e promover bem-estar com foco no que é significativo para o paciente.
Fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia e outras práticas de reabilitação devem estar integradas à equipe de Cuidados Paliativos desde os primeiros sinais de declínio funcional. Intervenções precoces podem adiar perdas nas atividades do cotidiano e favorecer a preservação da funcionalidade, fator intimamente relacionado à manutenção da qualidade de vida.
A avaliação funcional contínua também fornece dados valiosos sobre a resposta ao plano terapêutico, permitindo ajustes oportunos e reforçando a independência do paciente como sujeito ativo de seu cuidado.
Modo de usar:
Descubra como aplicar esta pílula paliativa de forma prática em seu dia a dia.
Realize a avaliação da funcionalidade de forma proativa e sistemática em pacientes em Cuidados Paliativos. Esse acompanhamento orienta intervenções voltadas à preservação da independência e da qualidade de vida.
Utilize escalas padronizadas e validadas para mensurar a funcionalidade. A PPS, a KPS e a ECOG são ferramentas confiáveis, com valor clínico e correlação prognóstica.
Recorra à avaliação funcional para antecipar necessidades. Um declínio funcional abrupto pode sinalizar progressão da doença e indicar a necessidade de reavaliação do plano terapêutico.
Dica da especialista 🤌🏻
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💡 Durante a abordagem paliativa, é essencial monitorar continuamente tanto a funcionalidade quanto o prognóstico. Ambos têm natureza dinâmica e podem se modificar rapidamente ao longo do tempo. Alterações na funcionalidade impactam diretamente na estimativa de prognóstico, o que pode exigir ajustes imediatos nas intervenções e no plano de cuidados.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Dignidade: Princípio que reconhece o valor intrínseco de cada indivíduo, estabelecendo que todas as pessoas devem ser tratadas com respeito, igualdade e liberdade, por meio da garantia de suas necessidades vitais. Eastern Cooperative Oncology Group (ECOG) Performance Status: Escala de avaliação funcional desenvolvida pelo Eastern Cooperative Oncology Group (ECOG), que classifica o desempenho físico do paciente de 0 (totalmente ativo) a 5 (óbito). É amplamente usada na oncologia e em Cuidados Paliativos para estimar a tolerância ao tratamento e a sobrevida. Fim de vida: Termo que define o último período da vida e fase mais avançada de uma doença, em que a saúde não pode ser recuperada. É marcado especialmente pelo declínio funcional do paciente e pela incurabilidade da doença. Na literatura está associado aos 6 últimos meses de vida, embora cada vez mais seja entendido não como um marcador de tempo, mas de estado de saúde. Alguns locais utilizam este termo como um período de dias a semanas que antecede a morte. Na Escola de Habilidades Paliativas, utilizamos como sinônimo de terminalidade, conforme é mais frequente em literatura. Funcionalidade: Capacidade de uma pessoa realizar, com ou sem apoio, atividades físicas, cognitivas, sociais e afetivas do cotidiano. Em Cuidados Paliativos, é um marcador clínico importante para avaliar independência e orientar o plano de cuidados. Pode ser medida por escalas como o Índice de Barthel, Escala de Katz e PPS. Independência: Capacidade de realizar atividades da vida diária sem auxílio de terceiros. Difere de autonomia, que diz respeito à capacidade de tomar decisões, mesmo na presença de dependência funcional. Karnofsky Performance Status (KPS): Escala que mede a funcionalidade de pacientes por meio de pontuações de 0 a 100, em incrementos de 10, considerando a capacidade de realizar atividades da vida diária. Utilizada como ferramenta prognóstica em pacientes com doenças crônicas graves, incluindo câncer e condições neurológicas. Palliative Performance Scale (PPS): Escala que avalia a funcionalidade e o estado clínico geral de pacientes em Cuidados Paliativos. Desenvolvida pelo Victoria Hospice Society, ela varia de 0% (morte) a 100% (estado pleno de saúde), em incrementos de 10%, considerando cinco dimensões: deambulação, atividade e evidência de doença, capacidade de autocuidado, ingestão oral e nível de consciência. Planejamento antecipado de cuidados: Processo no qual uma pessoa com capacidade decisória preservada, com auxílio da equipe de saúde, expressa e registra seus valores, objetivos e preferências em relação a seus cuidados de saúde, com foco no fim da vida. Tem como objetivo garantir cuidados compatíveis com a biografia da pessoa, devendo ter como produtos finais: 1) A construção de um testamento vital e 2) A escolha de um procurador para cuidados de saúde. Em inglês, diz-se “Advance Care Planning (ACP)”, de forma que também pode ser traduzido como planejamento avançado de cuidado. Plano de cuidados: Estratégia através da qual o objetivo do cuidado será alcançado. É sempre individualizado, conforme fase da doença, valores e biografia do paciente. Prognóstico: Previsão do curso ou do resultado provável de uma doença, condição ou tratamento, que estima a trajetória futura da saúde de um indivíduo, com espectro amplo, não limitado à estimativa de sobrevida. Qualidade de vida: De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) é “a percepção que um indivíduo tem da sua posição na vida. Esta percepção é feita em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações, e no contexto da cultura e dos sistemas de valores em que vive.“ Reabilitação paliativa: Conjunto de intervenções (como fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia) voltadas à manutenção ou recuperação da funcionalidade em pacientes sob Cuidados Paliativos. Sobrevida: Tempo de vida após um determinado marco temporal - por exemplo, sobrevida após diagnóstico de uma doença ou alta hospitalar. Terapia modificadora da doença: Todo tratamento que modifica o curso de uma doença, com objetivo de aumento de sobrevida e, idealmente, melhora na qualidade de vida. Não é sinônimo de terapia curativa.
Referências bibliográficas
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