Categorias: Fundamentos, Comunicação compassiva, Educação para a morte Autor(a): Viviane D’Andretta e Silva, psicóloga paliativista Publicado em: 18/06/2025
Contexto
O acesso à saúde é um direito universal, mas nem todas as pessoas vivenciam esse direito de forma equitativa. Pessoas LGBTQIAPN+ frequentemente enfrentam ambientes de cuidado pouco acolhedores e inclusivos, o que pode comprometer sua segurança e sensação de respeito — afastando, inclusive, muitas delas do acesso à saúde básica.
O cuidado em Cuidados Paliativos deve considerar os aspectos biopsicossociais de cada pessoa. Isso significa que indivíduos que não se reconhecem nos padrões da heterocisnormatividade também merecem um cuidado individualizado e acolhedor, que leve em conta suas demandas específicas — sem invalidar suas histórias, experiências e, sobretudo, sem apagar ou silenciar sua identidade.
Pessoas LGTBQIAPN+
O sistema de saúde, tanto público quanto privado, ainda opera sob uma lógica que privilegia a cisgeneridade e a heterossexualidade — tratadas como sexualidade humana padrão —, invisibilizando outras orientações sexuais, identidades de gênero e expressões de gênero. Cursos de graduação na área da saúde ainda abordam de maneira escassa e normativa a diversidade LGBTQIAPN+, baseando-se em corpos padronizados e modelos engessados de ensino.
Pessoas que rompem com a heterocisnormatividade frequentemente vivenciam experiências negativas antes mesmo de serem atendidas: enfrentam formulários excludentes, dificuldades no agendamento de exames e, até mesmo, encontram na sala de espera do consultório um espaço de vulnerabilidade e estresse. O próprio Ministério da Saúde reconhece que orientação sexual e identidade de gênero são marcadores importantes de vulnerabilidade, em razão do estigma, da discriminação e da exclusão social enfrentadas pela população LGBTQIAPN+.
A integralidade e singularidade humana necessita também contemplar aspectos biopsicossociais considerando também a diversidade da sexualidade humana. Não se pode limitar a sexualidade e os corpos a modelos únicos embasados unicamente em anatomia, cromossomos e hormônios — ou seja, não se pode presumir identidade de gênero a um modelo único baseado no sexo atribuído ao nascimento.
Cuidados Paliativos e a população LGBTQIAPN+
Situações estressoras e excludentes no sistema de saúde podem afastar pessoas LGBTQIAPN+ do cuidado de que necessitam. Crenitte et al. (2022) demonstraram que a população LGBTQIAPN+ tem acesso reduzido a cuidados médicos preventivos e relata experiências significativamente piores nos serviços de saúde em comparação à população não-LGBTQIAPN+.
As equipes de Cuidados Paliativos são reconhecidas não apenas pelo manejo de sintomas físicos em pessoas com doenças ameaçadoras à vida, mas também por valorizarem aspectos subjetivos, como preferências pessoais, história de vida e vínculos afetivos — promovendo um cuidado genuinamente individualizado.
Entretanto, estudo recente de Robinson e Matamoros (2024) evidenciou que profissionais de Cuidados Paliativos, em sua maioria, não reconhecem as necessidades específicas de minorias sexuais e de gênero no fim de vida. Suas práticas são frequentemente influenciadas por convicções pessoais, o que aumenta o risco de discriminação contra pessoas LGBTQIAPN+.
Ainda que equipes de Cuidados Paliativos tenham como princípio abordar dimensões físicas, psíquicas, sociais e espirituais do cuidado, elas, assim como outras equipes de saúde, nem sempre estão preparadas para oferecer um atendimento verdadeiramente acolhedor e inclusivo para comunidade LGBTQIAPN+. A falta de preparo pode resultar em silenciamento e/ou apagamento da identidade dessas pessoas — e isso pode agravar seu sofrimento existencial.
Profissionais da área ainda demonstram insegurança ao abordar temas ligados à sexualidade humana, tratando-os como tabu. A comunicação com pessoas que não se enquadram na heterocisnormatividade muitas vezes é atravessada por lacunas de conhecimento, desconforto e dúvidas. Para que essas pessoas se sintam verdadeiramente acolhidas, é necessário que tais temas sejam tratados com naturalidade, empatia e respeito.
Reconhecer a sexualidade humana em sua ampla diversidade, respeitando a individualidade de cada pessoa, é essencial. Quando os profissionais de saúde compreendem que a sexualidade é parte integrante do ser humano, ampliam sua escuta e se tornam capazes de oferecer cuidados mais alinhados às preferências e à história de vida de cada indivíduo.
Caminhos para a prática
Diante de todo o contexto apresentado, é essencial promover ambientes genuinamente inclusivos para todas as pessoas. Para isso, é necessário reconhecer a importância de estudar e se aproximar das vivências de pessoas LGBTQIAPN+. A seguir, apresento recomendações práticas que podem ampliar o olhar e qualificar os Cuidados Paliativos:
Reconhecer que apenas a própria pessoa pode afirmar sua identidade de gênero e/ou orientação sexual — são informações autodeclaradas;
Saber que orientação sexual não é o mesmo que identidade de gênero — são aspectos distintos e devem ser compreendidos como tal;
Considerar que pessoas LGBTQIAPN+ podem ter vivenciado experiências negativas ou discriminatórias em serviços de saúde, o que pode dificultar o vínculo de confiança com a equipe;
Acolher e reconhecer a diversidade dos corpos e suas demandas específicas;
Compreender os efeitos do estresse de minoria, reconhecendo vulnerabilidades acumuladas ao longo da vida;
Estimular o estudo contínuo e a discussão em equipe sobre as necessidades de pessoas LGBTQIAPN+;
Ativamente combater discursos e atitudes homofóbicas, transfóbicas e quaisquer formas de discriminação.
Modo de usar:
Descubra como aplicar esta pílula paliativa de forma prática em seu dia a dia.
Garanta que documentos, formulários e ambientes de saúde sejam inclusivos;
Respeite o nome social e os pronomes com os quais a pessoa deseja ser referida;
Não pressuponha orientação sexual, ou mesmo o gênero de uma pessoa com base em características físicas ou na genitália;
Produza e disponibilize materiais informativos e psicoeducativos que incluam as especificidades da população LGBTQIAPN+.
Dica da especialista 🤌🏻
Você já tem o e-pali ou costuma ler A incrível newsletter paliativa? Então já sabe que essa é uma seção especial: aqui compartilhamos insights a partir da nossa visão e experiência profissional.
💡 Em Cuidados Paliativos, reconhecer e valorizar a família escolhida é essencial. Nem sempre o principal vínculo de afeto e cuidado está na família de origem. Esteja atento para orientar a formalização de documentos que garantam a presença dessas pessoas nas decisões de cuidado. Lembre-se: existem muitas formas legítimas de ser família. Reconhecer e respeitar diferentes formas de constituição familiar — incluindo famílias homoafetivas — é fundamental para um cuidado que considera o ser humano na sua integralidade.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Doença ameaçadoras à vida: condição de saúde de qualquer etiologia, ativa, grave, progressiva e que causa sofrimento multidimensional ao paciente, seus familiares e cuidadores. Expressão de gênero: Forma como a pessoa manifesta seu gênero socialmente, que envolve elementos como vestimenta, gestos, tom de voz, cabelo e comportamentos. Pode variar com o tempo e o contexto, e não necessariamente corresponde às expectativas associadas ao sexo atribuído ao nascimento. Identidade de gênero: Vivência interna e individual do gênero com o qual a pessoa se identifica, podendo corresponder ou não ao sexo atribuído ao nascimento. É uma experiência subjetiva e autodefinida, que pode ser feminina, masculina, ambas, nenhuma ou outras possibilidades. Identidade sexual: Forma como a pessoa se reconhece e se define em relação a padrões culturais ligados à atração sexual, comportamentos e práticas. Pode incluir aspectos da orientação sexual, bem como dimensões políticas, sociais e subjetivas. Heterocisnormatividade: Estrutura social que assume a heterossexualidade, o padrão de gênero binário e a cisgeneridade como normas desejáveis, esperadas ou "naturais". Invisibiliza e marginaliza outras vivências de sexualidade e gênero, promovendo exclusões e desigualdades estruturais. LGBTQIAPN+: Sigla que representa pessoas que não se identificam com os padrões da heterossexualidade e/ou cisgeneridade. Refere-se a: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros (homens e mulheres transexuais e travestis), Queer (identidades que questionam normas de gênero e sexualidade), Intersexo, Assexuais, Panssexuais, Não-binárias. O símbolo “+” inclui outras identidades que não estão explicitamente representadas na sigla. Orientação sexual: Refere-se à atração afetiva e/ou sexual que uma pessoa sente — ou não sente — por outras. Pode se direcionar a pessoas do mesmo gênero, de gêneros diferentes, de múltiplos gêneros ou a nenhum gênero, e pode variar ao longo da vida. Sexualidade: Dimensão central da experiência humana que envolve corpo, prazer, relações, afetos, papéis e identidades de gênero, orientações sexuais, práticas, expressões culturais e vínculos. Vai além do ato sexual, sendo parte fundamental da saúde, do bem-estar e da identidade de cada pessoa.
Leitura complementar
Para aprofundar ainda mais os conhecimentos sobre o cuidado a pessoas LGBTQIAPN+, recomendo as seguintes leituras complementares — além das referências científicas desta edição:
Capítulo “Compreensão das questões específicas no atendimento a pessoas transgêneros”, no livro Saúde e Psicologia: dilemas e desafios da prática na atualidade – Lopes & Amorim, 2019.
Capítulo “O luto em famílias de indivíduos que fogem aos padrões heteronormativos”, no livro Luto por perdas não legitimadas na atualidade – Casellato, 2021.
Capítulo “Psicologia hospitalar para população LGBTQIAPN+: um cuidado diferenciado?”, no livro Tópicos em Psicologia Hospitalar – Lopes, 2023.
Capítulo “Luto não reconhecido: quem sou eu se não veem minha dor?”, no livro O voo da vida – do berço ao túmulo: a teoria do apego como base para os cuidados ao luto – Acário, Jarró & Correia, 2024.
Livro completo: Com um braço a gente acolhe, com o outro a gente luta – guia sobre acolhimento e direitos de crianças e adolescentes trans e suas famílias – Andrade & Nunes, 2025.
Referências bibliográficas
BRASIL. Brasil sem homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2004. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/brasil_sem_homofobia.pdf. Acesso em: 1 fev. 2025.
CIASCA, S. V.; HERCOWITZ, A.; JUNIOR, A. L. Definições da sexualidade humana. In: CIASCA, S. V.; HERCOWITZ, A.; JUNIOR, A. L. (orgs.). Saúde LGBTQIA+: práticas de cuidado transdisciplinar. 1. ed. Santana de Parnaíba, SP: Manole, 2021.
CRENITTE, M. R. F. et al. Transforming the invisible into the visible: disparities in the access to health in LGBT+ older people. Clinics (São Paulo), v. 78, p. 100149, 2022. DOI: https://doi.org/10.1016/j.clinsp.2022.100149. Acesso em: 1 fev. 2025.
PEDERSEN, J. R.; SILVA, J. A. A exploração sexual de crianças e adolescentes e sua relação com a vulnerabilidade social das famílias: desafios à garantia de direitos. In: KRÜGER, K. B.; OLIVEIRA, C. F. (orgs.). Violência intrafamiliar: discutindo facetas e possibilidades. Jundiaí: Paco, 2013. p. 45–64.
TESSER JUNIOR, Z. C. et al. A invisibilidade das pessoas LGBT no acesso à saúde. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 22, 2024, e02743254.