Categorias: Avaliação prognóstica Autor(a): Juliana Martins, médica clínica e paliativista Publicado em: 11/06/2025
Contexto
A identificação precoce da terminalidade nas doenças crônicas não oncológicas permanece um desafio central na prática clínica. Ao contrário do câncer, que frequentemente apresenta uma trajetória linear de declínio, as grandes falências orgânicas — como as de origem cardíaca, pulmonar, hepática e renal — evoluem de forma oscilante, com episódios agudos intercalados por períodos de recuperação parcial, mas com perda funcional acumulativa. Reconhecer esses padrões e os fatores prognósticos comuns e específicos de cada condição permite antecipar decisões, alinhar expectativas e integrar os Cuidados Paliativos de forma ética, eficaz e centrada na pessoa.
Trajetória Natural das Grandes Falências Orgânicas
A prognosticação nas grandes falências orgânicas exige familiaridade com padrões clínicos característicos e com fatores que, quando presentes em conjunto, indicam maior risco de deterioração clínica e mortalidade no curto e médio prazo. Essas doenças compartilham uma evolução típica em “degraus”: períodos de estabilidade aparente são interrompidos por agudizações, com recuperação apenas parcial e acúmulo de perda funcional. Essa trajetória pode se estender por anos, o que confere a falsa impressão de que a morte ocorre de maneira súbita — quando, na realidade, é o desfecho previsível de uma sucessão de deteriorações. Reconhecer esse padrão é essencial para antecipar necessidades e alinhar expectativas.
Em parte das síndromes neurológicas — especialmente nas demências — observa-se uma trajetória distinta: a queda da funcionalidade ocorre desde as fases iniciais, com piora progressiva ao longo do tempo e níveis muito baixos de independência mantidos por longos períodos. Nesse contexto, a morte pode parecer “súbita” sob outro aspecto: familiares e profissionais tendem a se habituar à condição de alta dependência, sem reconhecê-la como marcador de fragilidade extrema. Essa percepção distorcida pode dificultar a identificação de risco iminente de morte frente a intercorrências comuns.

Idade Avançada e Comorbidades
Ao contrário de algumas neoplasias, em que a idade pode ter relação variável com o prognóstico, nas grandes falências orgânicas a idade avançada e o acúmulo de comorbidades são fatores robustos de mau prognóstico. Isso vale tanto para a avaliação clínica individual quanto para a aplicação de modelos preditivos.
O Índice de Comorbidade de Charlson (CCI) estima a sobrevida em 10 anos com base na idade e em 16 comorbidades relevantes, sendo útil mesmo fora do contexto oncológico. Já o Burden of Illness Score for Elderly Persons (BISEP) avalia a sobrevida em 1 ano após uma internação hospitalar, considerando diagnósticos de alto risco, marcadores laboratoriais (como creatinina e albumina) e sinais de vulnerabilidade geriátrica, como demência e alterações da marcha.
Essa combinação de idade avançada e múltiplas doenças crônicas frequentemente se traduz em reserva funcional reduzida, o que limita a capacidade do organismo de se recuperar de agressões clínicas, mesmo aquelas consideradas menores em indivíduos mais jovens e saudáveis. O conceito de reserva fisiológica é especialmente importante na tomada de decisão clínica: um paciente com falência orgânica crônica, comorbidades e idade avançada pode ter risco significativo de desfecho fatal diante de uma infecção urinária ou um episódio de constipação, por exemplo — eventos comumente subvalorizados. Isso reforça a necessidade de uma abordagem proativa e realista frente à evolução da doença, incluindo discussões antecipadas sobre prioridades de cuidado e limites terapêuticos.
Evolução da Doença: Declínio Funcional, Sintomas Refratários e Hospitalizações
A funcionalidade é um indicador prognóstico essencial, independentemente da doença de base. Nas grandes falências orgânicas, o declínio é insidioso e cumulativo, com perda de capacidades após cada descompensação. Ainda que, isoladamente, não indique terminalidade, sua progressão sustentada é um sinal inequívoco de agravamento da condição clínica.
Diversos instrumentos podem ajudar na avaliação funcional. A Palliative Performance Scale (PPS), por exemplo, mensura cinco dimensões (deambulação, atividade, autocuidado, ingestão e nível de consciência) e atribui uma pontuação percentual entre 0% e 100% — escores abaixo de 50% costumam se associar a menor sobrevida e maior complexidade de cuidado. A escala de Katz, por sua vez, avalia seis atividades básicas da vida diária (banho, vestuário, uso do sanitário, transferência, continência e alimentação), útil sobretudo na identificação precoce de perda de autonomia em idosos. Já o Índice de Barthel adiciona uma gradação de dependência (leve a total) e incorpora atividades como locomoção e subir escadas, oferecendo um panorama mais detalhado da autonomia funcional.
Quando o declínio funcional se associa à presença de sintomas refratários — como dispneia, fadiga ou dor — e a hospitalizações não programadas, especialmente por quadros infecciosos ou descompensações recorrentes, o cenário sugere esgotamento da reserva clínica. Nesse contexto, há aumento da participação dos Cuidados Paliativos no cuidado do paciente como uma resposta ética e necessária à complexidade crescente da situação.
Modo de usar:
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Reconheça o padrão de trajetória oscilante: Diante de pacientes com grandes falências orgânicas, atente para a evolução em degraus, com episódios de agudização seguidos por recuperação parcial. Esse padrão é chave para suspeitar de progressão de doença, mesmo que a morte não pareça iminente.
Inclua idade e comorbidades na avaliação de risco: Utilize ferramentas como o Índice de Comorbidade de Charlson e o BISEP para embasar a estimativa de prognóstico e facilitar o diálogo com pacientes e famílias sobre expectativas realistas.
Monitore a funcionalidade com instrumentos validados: Incorpore a PPS, o escala de Katz e o Índice de Barthel na prática clínica para acompanhar perda de independência e orientar decisões terapêuticas mais adequadas à condição clínica.
Reaja à soma de fatores: Declínio funcional, sintomas refratários e hospitalizações repetidas e não programadas não devem ser vistos isoladamente, mas como sinais acumulativos de esgotamento. A presença simultânea desses elementos deve disparar discussões precoces sobre planos de cuidado e limites terapêuticos.
Dica da especialista 🤌🏻
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💡 Não espere a confirmação da terminalidade para integrar os Cuidados Paliativos. Especialmente nas grandes falências orgânicas, o olhar atento à trajetória da doença permite planejar o cuidado antes da crise, acolher com realismo e agir com compaixão — mesmo diante da incerteza.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Burden of Illness Score for Elderly Persons (BISEP): Modelo preditivo que avalia a carga global de doença em idosos com base em comorbidades, funcionalidade e sintomas autorrelatados. Está associado à mortalidade em 1 ano após a alta hospitalar e auxilia na identificação de pacientes com alta complexidade clínica, apoiando decisões compartilhadas em cuidados centrados na pessoa. Escala de Katz: Ferramenta utilizada para avaliar a capacidade do paciente realizar seis atividades básicas da vida diária: banho, vestuário, uso do sanitário, transferência, continência e alimentação. Cada item recebe pontuação binária (independente ou dependente), fornecendo um retrato objetivo do nível de funcionalidade. Fator prognóstico: Dados objetivos utilizados na prognosticação. Funcionalidade: Capacidade de uma pessoa realizar, com ou sem apoio, atividades físicas, cognitivas, sociais e afetivas do cotidiano. Em Cuidados Paliativos, é um marcador clínico importante para avaliar independência e orientar o plano de cuidados. Pode ser medida por escalas como o Índice de Barthel, Escala de Katz e PPS. Independência: Capacidade de realizar atividades da vida diária sem auxílio de terceiros. Difere de autonomia, que diz respeito à capacidade de tomar decisões, mesmo na presença de dependência funcional. Índice de Barthel: Instrumento que avalia o grau de independência do paciente em 10 atividades da vida diária (alimentação, banho, higiene pessoal, vestir-se, continência urinária, continência fecal, uso do banheiro e locomoção (transferência, mobilidade em superfícies planas e uso de escadas). A pontuação final varia de 0 (dependência total) a 100 (independência total), sendo útil para monitorar funcionalidade ao longo do tempo, especialmente em contextos de reabilitação e Cuidados Paliativos. Índice de Comorbidade de Charlson (CCI): Modelo preditivo desenvolvido para classificar e quantificar comorbidades com base em sua associação com a mortalidade em 10 anos. Cada condição clínica recebe uma pontuação ponderada e o escore total é somado para refletir a carga global de comorbidades. É amplamente utilizado para ajustar análises de risco e avaliar prognóstico em pacientes com múltiplas doenças crônicas, inclusive em contextos de Cuidados Paliativos. Modelo preditivo: Ferramenta estatística ou computacional que utiliza dados clínicos, demográficos e/ou laboratoriais para estimar a probabilidade de desfechos específicos em saúde, como mortalidade, complicações ou necessidade de intervenções. Em Cuidados Paliativos, os modelos preditivos auxiliam na estratificação de risco, no planejamento antecipado de cuidados e na tomada de decisão compartilhada. Palliative Performance Scale (PPS): Escala que avalia a funcionalidade e o estado clínico geral de pacientes em Cuidados Paliativos. Desenvolvida pelo Victoria Hospice Society, ela varia de 0% (morte) a 100% (estado pleno de saúde), em incrementos de 10%, considerando cinco dimensões: deambulação, atividade e evidência de doença, capacidade de autocuidado, ingestão oral e nível de consciência. Prognosticação: Processo clínico de estimar e comunicar a trajetória provável de uma doença, incluindo tempo de sobrevida, funcionalidade e complicações esperadas, com base em dados clínicos, experiência profissional e ferramentas prognósticas. Envolve as etapas de previsão e predição. Prognóstico: Previsão do curso ou do resultado provável de uma doença, condição ou tratamento, que estima a trajetória futura da saúde de um indivíduo, com espectro amplo, não limitado à estimativa de sobrevida. Reserva fisiológica: Capacidade do organismo de se adaptar e responder a estresses, doenças ou demandas aumentadas, preservando o funcionamento dos sistemas vitais. Diminui com envelhecimento, comorbidades e fragilidade, e sua redução está associada a pior prognóstico. Sintoma refratário: Sintoma que não pode ser controlado de forma satisfatória, mesmo após tratamentos adequados e baseados em evidências. Pode ocorrer por ineficácia, efeitos adversos intoleráveis ou tempo de resposta incompatível com a condição do paciente. Terminalidade: Termo que define o último período da vida e fase mais avançada de uma doença, em que a saúde não pode ser recuperada. É marcado especialmente pelo declínio funcional do paciente e pela incurabilidade da doença. Na literatura, está associado aos 6 últimos meses de vida, embora cada vez mais seja entendido não como um marcador de tempo, mas de estado de saúde. A maior parte da literatura considera terminalidade como sinônimo de fim de vida, embora algumas correntes façam distinção entre esses dois termos. Na Escola de Habilidades Paliativas, esses termos são utilizados como sinônimos.
Referências bibliográficas
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Murray SA (2005), Kendall M, Boyd K, Sheikh A. Illness trajectories and palliative care. BMJ. 2005;330(7498):1007-11.
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