Categorias: Tomada de decisão, Resolução de conflitos Autor(a): Juliana Martins, médica clínica e paliativista Publicado em: 28/05/2025
Contexto
A autonomia é um dos quatro princípios fundamentais da bioética e tem papel central na prática médica — especialmente diante de doenças que ameaçam a vida, como nos Cuidados Paliativos. No entanto, para que a autonomia seja plenamente exercida, é necessário que o paciente compreenda o que está sendo decidido e as possíveis consequências de suas escolhas. Por isso, a avaliação da capacidade decisória torna-se uma etapa essencial: ela permite distinguir o respeito à autonomia de uma eventual desresponsabilização médica frente a decisões complexas. Esta #PP discute princípios que norteiam essa avaliação.
O que é capacidade decisória?
Enquanto a autonomia é um direito inalienável do paciente, sua proteção depende da existência da capacidade de exercê-la. A capacidade decisória refere-se à aptidão do indivíduo para tomar decisões sobre sua própria saúde — sendo responsabilidade do profissional médico reconhecer quando essa capacidade está ausente.
Exercer a autonomia implica compreender o que está sendo decidido e as consequências da decisão. Assim, não se pode invocar respeito à autonomia para justificar a concordância com uma escolha feita sem o devido entendimento do seu impacto.
É importante diferenciar capacidade decisória de competência decisória. A primeira é uma capacidade do indívíduo que podo ser determinada por avaliação clínica, enquanto a segunda é determinada por critérios jurídicos. Por exemplo, um paciente com uma doença ameaçadora à vida pode ter capacidade para decidir pela eutanásia, mas não terá competência legal para tal no Brasil, onde a prática é proibida.
Além disso, a autonomia não é exercida de forma isolada. Ela se constrói na relação com a equipe de saúde e com a rede de apoio. Essa visão, conhecida como autonomia relacional, é especialmente relevante em contextos de vulnerabilidade, como nos Cuidados Paliativos.
Todo ser humano deve ser considerado capaz até que se prove o contrário. Ainda assim, a capacidade decisória pode ser perdida — de forma transitória ou permanente — ao longo de um processo de adoecimento.
Quando a perda for permanente, é essencial identificar e acionar o procurador para cuidados de saúde, para que as decisões sejam tomadas por julgamento substitutivo, com base nos valores e preferências previamente expressos pelo paciente. Já nos casos de perda transitória, os esforços da equipe devem se concentrar na recuperação da capacidade do paciente. Enquanto isso, as decisões devem seguir considerando sua biografia, seus valores e desejos previamente partilhados. Uma vez restabelecida a capacidade, o paciente deve ser imediatamente reinserido no processo de tomada de decisão compartilhada.
Em ambos os casos — perda permanente ou transitória —, a ausência atual de capacidade decisória não pode ser usada como justificativa para ignorar o que foi anteriormente partilhado pelo paciente, seja por meio de seu procurador para cuidados de saúde, seja por registros ou conversas com a própria equipe.
Antes da avaliação
Antes de iniciar a avaliação da capacidade decisória, é necessário garantir que alguns critérios básicos estejam presentes. O paciente deverá:
Ser considerado capaz perante a lei: No Brasil, são considerados absolutamente incapazes os menores de 16 anos, e relativamente incapazes aqueles entre 16 e 18 anos. Em adultos, condições como comprometimento cognitivo ou uso de substâncias devem ser avaliadas caso a caso, com base em sua repercussão sobre o discernimento, podendo caracterizar incapacidade relativa ou absoluta;
Estar lúcido e orientado no momento da avaliação: Lucidez, na medicina, refere-se ao estado de consciência necessário para reconhecer a realidade interna e externa, bem como para responder a estímulos de forma voluntária e consciente. Embora seja um pré-requisito, a lucidez por si só não é suficiente para garantir a capacidade decisória — é apenas um dos elementos avaliados;
Ser informado sobre o propósito da avaliação: O paciente deve saber que a entrevista tem como objetivo avaliar se ele tem condições de tomar a decisão em questão. Deve-se explicar, de forma clara, que será observada sua capacidade de compreender e elaborar sobre o tema, e não apenas de repetir o que foi dito. Estimule que ele se expresse com suas próprias palavras, como forma de verificar a assimilação real das informações.
Cumpridos esses três critérios, pode-se dar continuidade à avaliação da capacidade decisória propriamente dita.
Avaliando a capacidade decisória
Uma das formas mais amplamente aceitas para avaliar a capacidade decisória é a proposta por Appelbaum, que sistematiza a avaliação em quatro domínios principais:
Capacidade de decidir e de comunicar sua decisão
O paciente deve ser capaz de expressar sua escolha — verbalmente ou por outros meios compreensíveis. Nesta etapa, o papel do médico é solicitar que o paciente indique sua preferência quanto ao tratamento proposto. Uma forma de abordar esse momento pode ser:
“Agora que conversamos e você teve tempo para refletir, gostaria de saber se decidiu algo em relação à minha recomendação sobre os próximos passos.”
Oscilações frequentes entre respostas opostas podem indicar baixa compreensão do quadro clínico, dificuldades cognitivas ou a presença de condições neurológicas ou psiquiátricas subjacentes.
Entendimento da condição clínica e das opções terapêuticas
Como discutido anteriormente, não há exercício pleno da autonomia sem conhecimento. Por isso, o médico deve encorajar o paciente a explicar, com suas próprias palavras, o que compreendeu sobre sua condição de saúde, as opções de tratamento disponíveis e os riscos e benefícios envolvidos.
Perguntas como:
“Você se importaria de me explicar, com suas palavras, o que entendeu sobre o seu problema de saúde e as opções de tratamento?”
“Poderia falar também sobre os riscos e as vantagens de cada uma dessas opções?”
ajudam a avaliar a efetividade da comunicação até aquele momento.
Apreciação da situação e dos desfechos possíveis:
Compreender as informações transmitidas sobre o quadro clínico, as opções terapêuticas e seus riscos não garante, por si só, que o paciente tenha consciência de como essas informações se aplicam à sua própria realidade. A apreciação envolve reconhecer a gravidade da condição e as consequências prováveis das escolhas feitas.
Por exemplo, o paciente pode afirmar que não deseja reanimação em caso de parada cardiorrespiratória e compreender que isso resultaria em óbito. No entanto, pode não ter clareza de que esse cenário é iminente, considerando a sua condição atual. Isso demonstra que entender a informação não é o mesmo que reconhecer sua relevância pessoal e temporal.
Além disso, é importante distinguir entre repetir o que o profissional explicou e expressar, de fato, suas próprias crenças sobre a situação. O paciente pode repetir corretamente a explicação médica, mas ainda assim manter uma percepção distorcida da realidade — por negação, delírio, distorção da realidade ou mecanismos inconscientes de defesa.
Perguntas como:
“Você acredita que há algo de errado com a sua saúde neste momento?”
“Você acha que precisa de algum tipo de tratamento?”
ajudam a explorar esse nível de insight, revelando se o paciente consegue integrar cognitivamente e emocionalmente o que foi dito à sua experiência atual.
Ponderação quanto às opções terapêuticas: Aqui, o paciente deve demonstrar capacidade de integrar as informações recebidas com seus próprios valores e preferências. O médico pode explorar esse processo perguntando:
“Como você chegou à decisão de realizar (ou não) este tratamento?”
“O que faz essa opção ser melhor do que a outra, para você?”
É fundamental destacar que o objetivo não é julgar a escolha do paciente — que tem o direito de decidir por caminhos que, do ponto de vista do médico, possam parecer não razoáveis —, mas verificar se houve um raciocínio coerente na construção da decisão.
A avaliação da capacidade decisória é um processo complexo, que exige escuta qualificada, empatia e compromisso com o cuidado centrado na pessoa. Uma ferramenta complementar para apoiar essa análise é o acrônimo CURVES. Suas quatro primeiras letras (C–U–R–V) referem-se a critérios relacionados às necessidades do paciente, enquanto as duas últimas (E–S) indicam situações em que a decisão individual pode não ser priorizada.
A capacidade decisória deve ser avaliada sempre em relação a uma decisão específica e em um momento determinado. Isso significa que um paciente pode ser considerado capaz para uma decisão, mas incapaz para outra — e que essa capacidade pode variar ao longo do tempo. Esse entendimento é essencial para evitar generalizações indevidas, como rotular um paciente como “capaz” ou “incapaz” de forma global e permanente. Apesar de tentador, esse tipo de classificação é prejudicial ao vínculo terapêutico e à oferta do melhor cuidado possível. Em alguns casos, pode reforçar posturas paternalistas, que excluem o paciente das decisões; em outros, pode gerar uma lógica consumerista, em que a responsabilidade é transferida exclusivamente ao paciente, sem o devido suporte clínico.
É importante reafirmar que a ausência de capacidade decisória para uma decisão específica não deve levar à exclusão completa do paciente do processo de cuidado. Em contextos de vulnerabilidade ou lucidez parcial, podem ser consideradas formas alternativas de participação, como:
Assentimento informado: quando o paciente compreende parcialmente a situação, mas não tem plena capacidade para decidir, e manifesta concordância;
Não dissenso informado: quando, após a explicação cuidadosa da conduta proposta, o paciente não expressa objeção.
Essas estratégias devem ser utilizadas com cautela, sempre pautadas pela ética do cuidado e com o objetivo de evitar decisões unilaterais ou autoritárias.
Essa sistematização não é infalível. Como todo método avaliativo, está sujeita a erros e interpretações subjetivas. A expressão "lúcido e orientado", frequentemente usada de forma genérica em registros clínicos, não é suficiente para definir capacidade decisória. Usá-la isoladamente pode mascarar vulnerabilidades cognitivas ou emocionais relevantes. Uma avaliação estruturada, ainda que não elimine a complexidade da tarefa, fornece ao profissional uma base mais ética e consciente para proteger a autonomia do paciente — seja validando sua decisão, seja, diante da incapacidade, buscando alternativas alinhadas com seus valores e preferências.
Por fim, é indispensável o registro adequado da avaliação. Esse registro deve conter a conclusão (se o paciente foi considerado capaz ou incapaz para determinada decisão), o raciocínio clínico que levou a essa conclusão, e, se for o caso, a presença de outras pessoas durante a avaliação.
Modo de usar:
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Sistematize a avaliação da capacidade decisória em pacientes sob risco de comprometimento: indivíduos com comprometimento cognitivo, transtornos psiquiátricos descompensados ou em abstinência de substâncias psicoativas devem ser avaliados cuidadosamente, pois têm maior risco de prejuízo nessa capacidade;
Presuma capacidade até que se prove o contrário: todo paciente deve ser considerado capaz para tomar decisões até que haja justificativa clínica concreta para suspeitar de comprometimento.
Evite confundir decisões difíceis com incapacidade: o fato de o paciente tomar uma decisão com a qual você não concorda — ou que parece “irracional” à luz do seu julgamento — não significa, por si só, que ele esteja incapacitado. O que deve ser avaliado é o processo de construção da decisão, e não seu conteúdo.
Dica da especialista 🤌🏻
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💡 O acrônimo CURVES pode ser utilizado tanto como guia para avaliação quanto para o registro documental da capacidade decisória. Ele auxilia na organização do raciocínio clínico e na explicitação dos critérios considerados. Um exemplo de registro seria:
“Ana não apresenta capacidade decisória adequada no momento da minha avaliação. Apesar de verbalizar sua escolha de não ser intubada (C – Choose and Communicate), não consegue esclarecer os riscos e benefícios do procedimento (U – Understand), nem nomear outras abordagens possíveis ou as consequências da recusa (R – Reason). Ao coletar sua biografia, ela expressa como objetivo principal estar viva para o nascimento da bisneta, previsto para daqui a 90 dias (V – Values). Na ausência de representante legal para cuidados de saúde, minha opinião é de que, se clinicamente indicado, o procedimento seja realizado.”
Avaliar a capacidade decisória não é um ato burocrático — é um gesto clínico, ético e profundamente humano. É, talvez, uma das formas mais concretas de proteger a autonomia do paciente, evitando tanto o paternalismo quanto o abandono disfarçado de respeito.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em Cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Autonomia: Princípio bioético que define a capacidade do sujeito de se autodeterminar, decidir por si próprio. Capacidade decisória: Competência para tomar decisões informadas e conscientes — como a escolha entre diferentes tratamentos — e para realizar atividades específicas, como dirigir, no pleno exercício da autonomia. Competência decisória: Competência legalmente reconhecida de uma pessoa para tomar decisões válidas e vinculantes sobre sua própria vida e cuidados. Diferente da capacidade decisória — que é um julgamento clínico sobre a habilidade de compreender, avaliar e expressar escolhas —, a competência é um conceito jurídico e objetivo, determinado por lei ou por decisão judicial. No Brasil, por exemplo, uma pessoa pode ter plena capacidade de entender e querer a eutanásia, mas não possui competência para solicitá-la legalmente, pois a prática é proibida no país. Consumerista (modelo de tomada de decisão): Modelo de relação clínica em que o médico adota uma postura passiva diante das escolhas do paciente, transferindo integralmente a responsabilidade pelas decisões, sem oferecer orientação adequada ou considerar os aspectos técnicos e éticos envolvidos no cuidado. Diferencia-se do verdadeiro exercício da autonomia, que requer compartilhamento de conhecimento, diálogo e corresponsabilidade entre médico e paciente. Doença ameaçadora à vida: Condição de saúde de qualquer etiologia, ativa, grave, progressiva e que causa sofrimento multidimensional ao paciente, seus familiares e cuidadores. Eutanásia: Forma de morte medicamente assistida na qual a equipe de saúde, a pedido do paciente, administra um medicamento com o objetivo de abreviar a sua vida. Este pedido é feito sob o argumento de enfrentamento de sofrimento intolerável. Julgamento substitutivo: Processo no qual um terceiro deverá tomar decisões considerando o que o paciente gostaria que fosse feito, não o que ele mesmo entende ser a melhor opção. É esperado que este seja o modelo de tomada de decisão exercido pelo procurador para cuidados de saúde. Lucidez: Estado de consciência em que o indivíduo demonstra percepção adequada da realidade externa e interna, com capacidade de compreender o que ocorre ao seu redor e responder de forma voluntária, coerente e consciente aos estímulos. No contexto clínico, é frequentemente utilizado no exame do estado mental, por exemplo: “paciente lúcido e orientado no tempo e no espaço”. Paternalista (modelo de tomada de decisão): Modelo em que o médico toma as principais decisões, com pouca ou nenhuma participação do paciente, assumindo saber o que é melhor para ele. Procurador para cuidados de saúde: Pessoa nomeada por outra para tomar decisões sobre seus cuidados de saúde quando esta não puder mais expressar sua vontade. Cabe ao procurador esclarecer os desejos do paciente diante de situações não previstas no testamento vital, sendo sua posição considerada a opinião leiga de maior relevância no processo decisório — exceto, é claro, pela própria vontade do paciente previamente expressa no testamento vital. Tomada de decisão compartilhada: Processo colaborativo em que profissionais de saúde, pacientes e — quando apropriado — seus familiares ou representantes constroem juntos as decisões sobre o cuidado, integrando evidências clínicas (conhecimento técnico) com os valores, preferências e objetivos de vida do paciente.
Referências bibliográficas
de Camargo JD, Forte DN. Relationship between characteristics of health professionals and the respect for the autonomy of cancer patients at the end of life. PLoS ONE. 2024 Nov 1;19(11).
Ramos JGR, Vasconcelos C, Dadalto L. Practical approaches to the tasks of preserving autonomy and respecting vulnerability among critically ill adult patients: a narrative review. 2025;
Chow G v., Czarny MJ, Hughes MT, Carrese JA. CURVES: A Mnemonic for Determining Medical Decision-Making Capacity and Providing Emergency Treatment in the Acute Setting. Chest [Internet]. 2010 Feb 1;137(2):421–7.
Appelbaum PS. Assessment of Patients’ Competence to Consent to Treatment. New England Journal of Medicine [Internet]. 2007 Nov;357(18):1834–40.