Categorias: Fundamentos Autor(a): Alini Ponte, médica geriatra e paliativista Publicado em: 30/04/2025
Contexto
Pacientes geriátricos apresentam características próprias que os distinguem dos mais jovens: mudanças fisiológicas relacionadas ao envelhecimento, apresentações atípicas de doenças e maior vulnerabilidade aos efeitos adversos dos tratamentos. Além disso, a maioria convive com doenças crônicas de longa duração, frequentemente associadas a algum grau de dependência funcional e comprometimento cognitivo.
Essas condições favorecem a presença de múltiplas comorbidades sobrepostas, e o fim da vida, nesse grupo, costuma ser precedido por um período prolongado de declínio e crescente sobrecarga para os cuidadores. Diante dessa realidade, a abordagem em Cuidados Paliativos torna-se não apenas recomendada, mas urgente.
É nesse contexto que a geriatria encontra nos Cuidados Paliativos um de seus maiores aliados — não como um recurso final, mas como parte essencial e contínua do cuidado integral.
Interseção entre os Cuidados Paliativos e a Geriatria
O aumento da expectativa de vida e as mudanças no perfil de morbidade no fim da vida impõem desafios significativos. Embora as pessoas estejam vivendo mais, os últimos anos de vida são frequentemente marcados por multimorbidade crônica, dependência funcional, fragilidade e, muitas vezes, declínio cognitivo. Esse cenário demanda uma abordagem geriátrica especializada e Cuidados Paliativos adaptados às necessidades específicas da população idosa. Cuidados Paliativos e Geriatria frequentemente se deparam com os mesmos desafios, problemas e contextos, e compartilham princípios fundamentais:
Promover a autonomia, esclarecendo e documentando as preferências individuais e familiares, bem como o objetivo do cuidado;
Prestar cuidados centrados no paciente e na família, baseados em evidências;
Empregar uma abordagem interdisciplinar;
Ter atenção criteriosa à prescrição e uso de medicamentos;
Empregar habilidades interpessoais e de comunicação que possibilitem uma troca eficaz de informações entre pacientes, famílias e profissionais de saúde;
Coordenar o cuidado, especialmente durante as transições entre diferentes contextos assistenciais (domicílio, ambulatório, internação hospitalar, instituições de longa permanência, hospice) e estágios da doença;
Reconhecer a importância dos cuidadores familiares e atender também às suas necessidades;
Desenvolver planos terapêuticos que considerem a relação custo-efetividade e o impacto econômico sobre os envolvidos;
Maximizar a qualidade de vida e a funcionalidade;
Oferecer apoio psicossocial, espiritual e no processo de luto ao paciente, familiares e cuidadores.
Indicação de Cuidados Paliativos em Geriatria
Diante da mudança do perfil epidemiológico da mortalidade e do envelhecimento progressivo da população — especialmente entre aqueles acima de 85 anos — torna-se fundamental identificar pacientes idosos portadores de doenças ameaçadoras da vida.
As indicações para a introdução de Cuidados Paliativos em idosos incluem:
Síndromes geriátricas: Em idosos, os marcadores para o início dos Cuidados Paliativos estão mais centrados na identificação e manejo do comprometimento funcional e cognitivo, no risco ou desenvolvimento de fragilidade, na dependência de cuidadores/familiares e na carga de sofrimento sintomático — em vez da presença de uma doença terminal específica ou de sinais claros de mau prognóstico ou morte iminente;
Presença de sofrimento sintomático: Independentemente de estar ou não relacionado a uma doença em terminalidade, o sofrimento sintomático deve ser rapidamente reconhecido e abordado por meio de uma avaliação global e consequente plano de cuidado e tratamento;
Expectativa de vida reduzida: Quando o tempo de vida restante é limitado (medido em meses ou poucos anos, e não em décadas), a qualidade dos dias torna-se proporcionalmente mais relevante. A prioridade atribuída à melhoria da qualidade de vida deve crescer conforme a necessidade e os objetivos estabelecidos;
Estágio da doença: Embora os Cuidados Paliativos priorizem diferentes objetivos conforme as necessidades individuais de cada paciente e família, o estágio da doença crônica contribui para determinar o escopo e a intensidade das intervenções paliativas apropriadas.
Explorando preferências e metas do idoso
Esclarecer preferências e estabelecer objetivos do cuidado alcançáveis é um requisito fundamental no planejamento antecipado de cuidado. Por meio de uma abordagem interdisciplinar, desenvolve-se um plano de cuidados adaptado às necessidades, objetivos e preferências do paciente. Esse plano deve também contemplar aspectos psicossociais, espirituais e financeiros, além de estratégias para mitigar a sobrecarga e prevenir o estresse do cuidador.
Idosos frequentemente apresentam desafios neuropsiquiátricos, como delirium, delírio e declínio cognitivo, que dificultam tanto o tratamento quanto a tomada de decisões. O isolamento social e o estresse dos cuidadores são também mais prevalentes nesse grupo, exigindo suporte psicossocial estruturado. A maior frequência de comprometimento cognitivo intensifica questões médico-legais e éticas, como a avaliação da capacidade decisória, o planejamento antecipado de cuidados e as decisões de fim de vida. Nessas situações, é comum a atuação de representantes legais e procuradores para cuidados de saúde, o que pode gerar conflitos entre a autonomia do paciente e as expectativas de familiares e cuidadores.
Modo de usar:
Descubra como aplicar esta pílula paliativa de forma prática em seu dia a dia.
Evite o risco do etarismo: A idade cronológica, isoladamente, não deve ser o critério determinante para decisões clínicas ou de cuidado;
Identifique e valorize a heterogeneidade: Idosos têm necessidades complexas, relacionadas a múltiplas doenças que ocorrem simultaneamente e que causam dependência funcional;
Não espere: Uma pessoa com diagnóstico de demência pode viver por décadas e é mandatório que uma abordagem paliativa esteja inserida em seu cuidado desde o momento do diagnóstico.
Dica da especialista 🤌🏻
Você já tem o e-pali ou costuma ler A incrível newsletter paliativa? Então já sabe que essa é uma seção especial: aqui compartilhamos insights a partir da nossa visão e experiência profissional.
💡 Com base na minha prática clínica assistencial, o cuidado de excelência ao paciente idoso deve estar centrado no conhecimento de sua biografia e no respeito à sua autonomia. Comemore as conquistas (mesmo as pequenas), valorize o tempo de independência e reabilite até onde for possível. Permita que sua identidade e dignidade sejam mantidas ao longo de sua trajetória, até sua partida.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Abordagem interdisciplinar: Trabalho colaborativo entre profissionais de diferentes áreas para atender às múltiplas necessidades do paciente e da família. Há o compartilhamento de informações e experiências que permite a tomada de decisões conjuntas e a construção de um plano de cuidados colaborativo. Se diferencia do atendimento multidisciplinar por prever a estreita interação entre os membros da equipe, mesmo que não no momento do atendimento. Autonomia: Princípio bioético que define a capacidade do sujeito de se autodeterminar, decidir por si próprio. Capacidade decisória: Competência para tomar decisões informadas e conscientes — como a escolha entre diferentes tratamentos — e para realizar atividades específicas, como dirigir, no pleno exercício da autonomia. Delírio: Condição na qual há alteração do juízo de realidade proveniente de um pensamento patológico, porém a lucidez da consciência, atenção e memória permanecem preservadas. Geralmente associado a patologias psiquiátricas. Delirium: Distúrbio agudo, transitório e geralmente reversível, caracterizado pela alteração flutuante da atenção, da cognição e do nível de consciência. Geralmente, secundário à doença orgânica, representando uma disfunção neurológica associada. Dignidade: Princípio que reconhece o valor intrínseco de cada indivíduo, estabelecendo que todas as pessoas devem ser tratadas com respeito, igualdade e liberdade, por meio da garantia de suas necessidades vitais. Estresse do cuidador: Nível de sobrecarga multifacetada do cuidador ao cuidar de um familiar e/ou ente querido ao longo do tempo. Também chamado de sobrecarga do cuidador, pode ser mensurado através da escala de Zarit. Objetivo do cuidado: Objetivo a ser alcançado com o tratamento, definido com base nos valores e preferências do paciente por meio de um processo de tomada de decisão compartilhada. Exemplos de objetivos do cuidado incluem: "cura da doença", "prolongamento da vida a qualquer custo", "manutenção ou melhoria da funcionalidade", "prolongamento da vida sem medidas que causem sofrimento", "promoção da qualidade de vida" e "uma boa morte". Planejamento antecipado de cuidados (PAC): Processo no qual uma pessoa com capacidade decisória preservada, com auxílio da equipe de saúde, expressa e registra seus valores, objetivos e preferências em relação a seus cuidados de saúde, com foco no fim da vida. Tem como objetivo garantir cuidados compatíveis com a biografia da pessoa, devendo ter como produtos finais: 1) A construção de um testamento vital e 2) A escolha de um procurador para cuidados de saúde. Em inglês, diz-se “Advanced Care Planning (ACP)”, de forma que também pode ser traduzido como planejamento avançado de cuidado. Plano de cuidados: Estratégia através da qual o objetivo de cuidado será alcançado. É sempre individualizado, conforme fase da doença, valores e biografia do paciente. Procurador para cuidados de saúde: Pessoa nomeada por outra para tomar decisões sobre seus cuidados de saúde quando esta não puder mais expressar sua vontade. Cabe ao procurador esclarecer os desejos do paciente diante de situações não previstas no testamento vital, sendo sua posição considerada a opinião leiga de maior relevância no processo decisório — exceto, é claro, pela própria vontade do paciente previamente expressa no testamento vital
Referências bibliográficas
Goldhirsch S, Chai E, Meier DE, Morris J. Geriatric palliative care : a practical guide for clinicians. New York: Oxford University Press; 2014.
Pacala, J. T. (2014). Why geriatrics and palliative care need each other. Journal of the American Geriatrics Society, 62(12), 2322–2324.
World Health Organization. (2004). A guide for health care professionals: Palliative care for older people. WHO Regional Office for Europe.
Kapo J, Morrison LJ, Liao S. Palliative care for the older adult. J Palliat Med. 2007 Feb;10(1):185-209. doi: 10.1089/jpm.2006.9989. PMID: 17298269
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