Categorias: Fundamentos, Tomada de decisão, Resolução de conflitos, Manejo de fim de vida, Gestão em Cuidados Paliativos, Educação para a morte Autor(a): Luciana Dadalto, advogada em direito médico e da saúde e bioeticista Publicado em: 16/04/2025
Contexto
Durante muitos séculos, o cuidado de saúde esteve centrado na figura do profissional; foi apenas após a Segunda Guerra Mundial que esse foco se deslocou para o paciente. Tal deslocamento inaugurou o que, atualmente, é chamado de cuidado centrado no paciente, tendo o testamento vital como uma das suas muitas ferramentas. Nesta #PP, discutiremos o que é o testamento vital, sua história e sua aplicação prática nos cuidados dos pacientes acompanhados pelos Cuidados Paliativos.
Breve história do testamento vital
O testamento vital é um tipo de diretiva antecipada de vontade (DAV) que versa sobre os tratamentos e preferências de cuidados relacionados à terminalidade da vida. Para melhor entendimento deste documento e da sua aplicação, faz-se necessária a compreensão da sua história.
Em 1969, o advogado e defensor dos Direitos Humanos Luis Kutner publicou nos Estados Unidos o primeiro artigo científico a tratar do direito de morrer que se tem notícia. Nesse trabalho, Kurtner, reconhecendo a ilicitude da eutanásia e do suicídio assistido, defende a ideia de que o paciente pode tomar decisões sobre seu tratamento, especialmente quando da incurabilidade de sua enfermidade. Sendo assim, propôs incluir uma cláusula nos termos de consentimento utilizados para realização de cirurgias e procedimentos radicais — nela, o paciente poderia recusar tratamento caso sua condição se tornasse incurável ou evoluísse para estado vegetativo.
Propôs ainda um documento, ao qual nomeou de living will, com as seguintes especificidades: (i) o paciente capaz deixaria escrita sua recusa a se submeter a determinados tratamentos quando o estado vegetativo ou a terminalidade fossem comprovados; (ii) a vontade manifestada pelo paciente no living will se sobreporia à vontade da equipe médica, dos familiares e dos amigos do paciente e deveria ser assinado por, no mínimo, duas testemunhas; (iii) esse documento deveria ser entregue ao médico pessoal, ao cônjuge, ao advogado ou a um confidente do paciente; (iv) deveria, ainda, ser referendado pelo comitê do hospital em que o paciente estivesse sendo tratado; e (v) poderia ser revogado a qualquer momento antes de o paciente atingir o estado de inconsciência.
O living will, cunhado por Luis Kutner, alcançou status de lei federal nos EUA apenas em 1991, com a Patient Self Determination Act (PSDA), que, em sua segunda seção, dispõe acerca dos documentos de advanced directives – conhecidas no Brasil como diretivas antecipadas de vontade (DAV) -, que são documentos de manifestação de vontade para tratamento médico.
Documentos de diretivas antecipadas de vontade (DAV) da atualidade
Atualmente, as DAV são entendidas como um gênero de documentos de manifestação de vontade prévia, que apenas terão efeito quando o paciente não conseguir manifestar livre e autonomamente sua vontade. Assim, esse gênero se divide em espécies, com aplicações específicas para estados clínicos diferentes; são eles:
Testamento vital;
Procuração para cuidados de saúde;
Ordem de não reanimação;
Diretivas antecipadas para saúde mental;
Diretivas antecipadas para demência;
Plano de parto;
Diretivas de recusa terapêutica;
Diretivas de parada voluntária de comer e beber.
Infelizmente, essa compreensão ainda é distante da realidade brasileira: o Conselho Federal de Medicina (CFM), em 2012, publicou uma resolução sobre testamento vital, mas nomeou o documento de diretivas antecipadas de vontade (DAV), de forma que essa confusão terminológica continua.
Testamento vital no Brasil
A única norma específica sobre testamento vital no Brasil é a resolução CFM 1995/2012. Sendo assim, é importante salientar que esta é uma norma deontológica do CFM, ou seja, não é uma lei e não vincula outros profissionais de saúde.
A constitucionalidade dessa resolução foi questionada judicialmente por meio da Ação Civil Pública no. 1039-86.2013.4.01.3500, tendo o Poder Judiciário reconhecido que a resolução não fere a Constituição Federal, pois protege o direito à autodeterminação do paciente e não estabelece uma forma para o documento.
Apesar de inexistir lei específica no país, há outras normas e entendimentos judiciais que nos permitem as seguintes conclusões:
No Brasil, os profissionais de saúde costumam utilizar os termos testamento vital e diretivas antecipadas de vontade de forma intercambiável, apesar do testamento vital ser um tipo de DAV;
Este documento pode ser feito por qualquer pessoa com mais de 18 anos, com capacidade civil;
O documento só será usado quando o paciente estiver incapacitado de se autodeterminar e em situação de fim de vida;
O documento não pode ser feito pela família;
A pessoa pode documentar suas vontades por meio de documento particular (sem necessidade de registro em cartório) ou escritura pública lavrada em Tabelionato de Notas, sendo que a escritura pública confere uma maior segurança jurídica;
Se o paciente expressar verbalmente sua vontade para o médico, este profissional precisa anotar tais informações em prontuário;
Os desejos do paciente, documentados, prevalecem sobre a vontade dos familiares.
Em regra, os médicos devem seguir os desejos do paciente manifestados neste documento. O descumprimento só poderá acontecer quando os desejos do paciente violarem o Código de Ética Médica e/ou a legislação vigente no país.
Eu recomendo ainda que a documentação seja resultado de um processo de planejamento antecipado de cuidados, sempre orientado por um profissional de saúde. Embora a lavratura em cartório (escritura pública) não seja obrigatória, ela pode conferir maior segurança jurídica. O paciente também pode optar por um documento particular, ou até mesmo manifestar sua vontade verbalmente ao médico, desde que essa manifestação seja devidamente registrada em prontuário. Importante destacar que, independentemente do meio utilizado — seja escritura pública, documento particular ou registro em prontuário — o nome do documento continua sendo testamento vital. O essencial é que ele reflita de forma clara e antecipada os desejos do paciente para situações de incapacidade e terminalidade. Considerando que ainda não temos lei específica no Brasil, a consultoria de um advogado pode ser útil para garantir maior clareza e respaldo.
No âmbito hospitalar, é necessário que as instituições criem fluxos para receber o documento, informar a existência para todos os profissionais que cuidam do paciente, acolher a família e, se preciso for, tomar medidas para que os desejos do paciente sejam cumpridos.
Modo de usar:
Descubra como aplicar esta pílula paliativa de forma prática em seu dia a dia.
Converse com seu paciente sobre a importância do testamento vital;
Compreenda a relevância em respeitar os desejos do seu paciente;
Organize sua instituição de saúde para receber e honrar este documento;
Capacite sua equipe de saúde para compreender e respeitar o testamento vital do paciente.
Dica da especialista 🤌🏻
Você já tem o e-pali ou costuma ler A incrível newsletter paliativa? Então já sabe que essa é uma seção especial: aqui compartilhamos insights a partir da nossa visão e experiência profissional.
💡 Fazer um testamento vital é um ato de amor próprio e um mergulho em seus valores mais caros. Para que você, profissional de saúde, compreenda profundamente as nuances, desafios e importância deste documento, sugiro que experimente escrever o seu próprio testamento vital. Só assim, na minha opinião, você terá condições pessoais e técnicas de ajudar seu paciente à escrever o dele.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Conselho Federal de Medicina (CFM): Autarquia que possui atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica no Brasil. Cuidado centrado no paciente: Abordagem do cuidado em saúde que coloca a pessoa - e não apenas sua condição clínica - no centro do processo de cuidado. Propõe que o serviço de saúde se ajuste às necessidades, valores e preferências do paciente, promovendo uma parceria ativa entre equipe, paciente, familiares e cuidadores. Essa abordagem busca garantir que todos sejam respeitados, bem informados, engajados nas decisões, apoiados e tratados com dignidade, compaixão e empatia. Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV): Gênero de documentos de autodeterminação do paciente, com objetivo de manifestar previamente sua vontade para guiar seu cuidado médico em situações específicas, que terá efeito quando ele (o paciente) não conseguir manifestar autonomamente seus desejos. São exemplos: plano de parto, testamento vital, etc. Eutanásia: Forma de morte medicamente assistida na qual a equipe de saúde, a pedido do paciente, administra um medicamento com o objetivo de abreviar a sua vida. Este pedido é feito sob o argumento de enfrentamento de sofrimento intolerável. Planejamento antecipado de cuidados (PAC): Processo no qual uma pessoa com capacidade decisória preservada, com auxílio da equipe de saúde, expressa e registra seus valores, objetivos e preferências em relação a seus cuidados de saúde, com foco no fim da vida. Tem como objetivo garantir cuidados compatíveis com a biografia da pessoa, devendo ter como produtos finais: 1) A construção de um testamento vital e 2) A escolha de um procurador para cuidados de saúde. Em inglês, diz-se “Advanced care planing”, de forma que também pode ser traduzido como planejamento avançado de cuidado. Norma deontológica: Princípio ético ou regra que orienta o comportamento de profissionais em determinada área ou profissão. Exemplos de normas deontológicas são aquelas colocadas pelos códigos de ética profissional, como o Código de Ética Médica (CEM) e o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Ordem de não reanimação (ONR): Termo que define a opção do paciente por não receber medidas de reanimação cardiopulmonar no caso de parada cardiorrespiratória (PCR). Pode fazer parte de um testamento vital e deve ser registrada em prontuário. Em inglês, diz-se “Do not resuscitate (DNR)”. Suicídio assistido: Forma de morte medicamente assistida na qual o próprio paciente toma - sem ajuda de outra pessoa - um medicamento, prescrito por um médico, com o objetivo de abreviar a sua vida, devido a sofrimento intolerável. Terminalidade: Termo que define o último período da vida e fase mais avançada de uma doença, em que a saúde não pode ser recuperada. É marcado especialmente pelo declínio funcional do paciente e pela incurabilidade da doença. Na literatura, está associado aos 6 últimos meses de vida, embora cada vez mais seja entendido não como um marcador de tempo, mas de estado de saúde. A maior parte da literatura considera terminalidade como sinônimo de fim de vida, embora algumas correntes façam distinção entre esses dois termos. Na Escola de Habilidades Paliativas, esses termos são utilizados como sinônimos. Testamento vital: Tipo de diretiva antecipada de vontade (DAV), que versa sobre os tratamentos e preferências de cuidados relacionados à terminalidade da vida. Na Resolução do Conselho Federal de Medicina Nº 1995/2012, é trazida como sinônimo de DAV.
Referências bibliográficas
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução 1995/2012. Disponível: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf
DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 7 ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2025, (no prelo)
KUTNER, Luis. Due process of Euthanasia: The Living Will, A Proposal. Indiana Law Journal. v. 44, p. 539-554,1969