Categorias: Fundamentos, Avaliação prognóstica, Comunicação compassiva, Manejo de sintomas, Tomada de decisão, Resolução de conflitos, Manejo de fim de vida, Gestão em Cuidados Paliativos, Educação para a morte Autores: Juliana Martins, médica clínica e paliativista Publicado em: 09/04/2025
Contexto
O adoecimento, seja ele agudo ou crônico, coloca o paciente em situações de intensa vulnerabilidade. O comprometimento cognitivo — muitas vezes inerente a doenças ameaçadoras à vida — pode interferir na sua participação nas decisões sobre a própria saúde. Caso seus valores e preferências não estejam claros para quem conduz o cuidado, a autonomia e a dignidade da pessoa podem ser comprometidas. O planejamento antecipado de cuidados (PAC) surge como uma ferramenta essencial para assegurar que esses valores e preferências sejam respeitados, mesmo quando o paciente não puder mais se expressar. Implementá-lo de forma adequada fortalece o cuidado centrado na pessoa e previne decisões desalinhadas com seus desejos.
Definição
Conforme trazido no glossário paliativo, o PAC é um processo no qual uma pessoa, com capacidade decisória preservada e com o apoio da equipe de saúde, reflete, expressa e registra seus valores, objetivos e preferências para cuidados futuros, especialmente em cenários de fim de vida. Seus principais produtos são o testamento vital e a nomeação de um procurador para cuidados de saúde.
A proposta desse processo é possibilitar, por meio da abordagem das dimensões física, psicológica, social e espiritual, a identificação clara das preferências da pessoa em relação aos seus cuidados. Trata-se de um processo desafiador, pois exige que a pessoa entre em contato com a própria finitude e com a possibilidade de, em algum momento, não estar apta a tomar decisões por si mesma.
Barreiras para construção e efetivação do PAC
A dificuldade de conversar sobre a morte é uma das principais barreiras para a construção do Planejamento Antecipado de Cuidados (PAC), tanto para o paciente quanto para a equipe de saúde. No entanto, os desafios não se limitam a essa questão. Diversos outros fatores podem impactar a construção e a efetivação do PAC:
Barreiras do paciente: desconhecimento sobre sua condição de saúde; presença de doenças de curso imprevisível; emoções como ansiedade, medo e negação; e a expectativa de que a equipe de saúde tome a iniciativa de iniciar o processo.
Barreiras do profissional de saúde: receio de retirar a esperança do paciente — especialmente em momentos em que ele aparenta estar bem —; tempo limitado para os atendimentos; e falta de treinamento adequado em comunicação, sobretudo em temas relacionados ao fim de vida.
Barreiras do sistema de saúde: foco predominante no tratamento curativo; escassez de recursos; ausência de abordagens estruturadas sobre o tema; e dificuldades de acesso ou de atualização dos documentos de vontade previamente construídos.
Reconhecer essas barreiras é o primeiro passo para elaborar estratégias que permitam superá-las, promovendo um cuidado mais alinhado aos valores e desejos do paciente.
Momentos para construção e revisão do PAC
Idealmente, todas as pessoas deveriam realizar seu Planejamento Antecipado de Cuidados (PAC), elaborando e documentando seu testamento vital e escolhendo um procurador para cuidados de saúde. Há uma falsa sensação de que haverá tempo para planejar quando surgir uma doença, mas o que se observa, mesmo em casos de adoecimentos crônicos, é uma grande dificuldade em abordar temas complexos como a morte e o morrer. A evitação desse assunto impede discussões essenciais sobre o que é verdadeiramente importante para a pessoa. Por isso, recomenda-se que, ainda em bom estado de saúde, tenhamos a oportunidade de refletir, elaborar e documentar aquilo que é valioso para nós e como gostaríamos de ser cuidados em situações de incapacidade.
É importante destacar que existem momentos críticos tanto para a reavaliação de um PAC já construído quanto para o início de sua elaboração, caso ainda não tenha sido iniciada. Esses momentos refletem situações de mudança clínica e/ou de transformação nos valores e preferências dos pacientes, sendo especialmente recomendados nos seguintes cenários:
Logo após o diagnóstico de uma doença grave;
Diante da intensificação da carga de sintomas;
Com a progressão da doença;
Quando houver mudanças no esquema terapêutico, especialmente por falha do tratamento;
Diante de declínio funcional.
Esses momentos representam oportunidades valiosas para reavaliar aquilo que é mais significativo para o paciente e refletir sobre a melhor forma de proteger esses valores.
Construindo o PAC
Para a construção do Planejamento Antecipado de Cuidados (PAC), é essencial que o profissional de saúde tenha clareza de seu objetivo, para que também possa transmiti-lo ao paciente. Não se engaja em uma conversa difícil por curiosidade, mas sim por uma finalidade concreta: preservar a dignidade do paciente em seu cuidado. Nomear isso ao paciente estreita o vínculo terapêutico e facilita a coleta de seus valores e preferências.
O processo de construção do PAC não se inicia nem se finaliza em um único encontro, tampouco está restrito aos ambientes de atenção à saúde. O profissional deve estimular a reflexão do paciente sobre o que é importante para si, especialmente em relação aos cuidados de fim de vida. Essas respostas, geralmente, não estarão prontas: o paciente precisará refletir, elaborar e reavaliar o que foi conversado. A construção do PAC é um processo contínuo que, ao final, gera o testamento vital e a definição do procurador para cuidados de saúde — não se pode reduzi-lo apenas ao momento em que esses documentos são formalizados.
Nem todo paciente concordará em construir um PAC — e não é nosso objetivo forçá-lo. Em situações como essa, é essencial acolher as emoções envolvidas e compreender os motivos que levam o paciente a recusar o processo. Caso ele opte por não seguir adiante, é importante explicar que a ausência de planejamento, incluindo seus produtos finais, pode impactar diretamente seu cuidado futuro. Sem esse direcionamento prévio, as decisões tendem a recair sobre familiares em sofrimento, que podem se sentir sobrecarregados por não saberem como melhor honrar os desejos do ente querido — ou acabar tomando decisões desalinhadas com os valores íntimos do paciente, ainda que estejam tentando fazer o melhor.
Além disso, ao longo do processo, o paciente pode optar por ter alguém de confiança presente. Oferecer essa opção é fundamental para que ele se sinta seguro e respeitado em suas escolhas. Mesmo que opte por não envolver familiares durante a construção do PAC, com o consentimento do paciente, é desejável que eles conheçam os produtos finais — o testamento vital e a escolha do procurador para cuidados de saúde —, bem como os valores e motivações que orientaram essas decisões. Essa transparência aumenta a chance de que os documentos sejam acessados pela equipe de saúde e reduz possíveis conflitos entre familiares e profissionais, garantindo que a opinião mais importante seja aquela previamente registrada pelo próprio paciente.
Uma boa coleta de biografia e valores pressupõe uma comunicação honesta, acolhedora e eficaz. Para isso, é necessário reconhecer e integrar o contexto cultural do paciente e seu nível de letramento em saúde, garantindo que ele se aproprie dos termos e compreenda o contexto necessário para uma comunicação efetiva. Assim como o contexto influencia os objetivos e preferências, as experiências prévias do paciente também terão impacto: abordar vivências de adoecimentos anteriores — próprios ou de pessoas próximas — e identificar os medos e preocupações gerados são estratégias valiosas para entender o que é prioritário para aquela pessoa.
O profissional médico é indispensável para garantir a coerência técnica do PAC, orientando o paciente sobre as morbidades e terapêuticas disponíveis, e alinhando expectativas às possibilidades clínicas. Por fim, é desejável a participação de um profissional do Direito na construção dos produtos finais, para assegurar a congruência jurídica do documento.
Como veremos na #PP sobre testamento vital, há diferentes formas de documentar esse instrumento. No Brasil, muitos profissionais do Direito incentivam seu registro em cartório, conferindo maior segurança jurídica ao documento, mas essa não é uma obrigatoriedade. É importante ressaltar que um testamento vital registrado no prontuário pelo médico que o construiu com o paciente tem a mesma validade que aquele oficializado em cartório.
Modo de usar:
Descubra como aplicar esta pílula paliativa de forma prática em seu dia a dia.
Não espere a doença aparecer: estimule a construção do PAC com o seu paciente antes mesmo do surgimento de uma doença ameaçadora à vida e utilize momento críticos - novo diagnóstico, declínio funcional, etc - para revisá-lo;
Estimule o diálogo: explore os valores e desejos do paciente em conversas regulares e sem pressa, tanto com você quanto com seus familiares e pessoas que poderão participar do seu cuidado;
Formalize e documente os produtos finais: registre o testamento vital e a nomeação do procurador para cuidados de saúde e incentive ao paciente comunicar o seu conteúdo às pessoas envolvidas no seu cuidado.
Dica da especialista 🤌🏻
Você já tem o e-pali ou costuma ler A incrível newsletter paliativa? Então já sabe que essa é uma seção especial: aqui compartilhamos insights a partir da nossa visão e experiência profissional.
💡Na minha experiência, um planejamento antecipado de cuidados através de conversas honestas com o profissional de saúde gera excelente testamento final, mas não garante a sua execução. Dividir com familiares e amigos os valores que motivaram aquela construção é fundamental para que eles sejam, também, grandes defensores do que o paciente considera um cuidado digno.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Autonomia: Princípio bioético que define a capacidade do sujeito de se autodeterminar, decidir por si próprio. Dignidade: Princípio que reconhece o valor intrínseco de cada indivíduo, estabelecendo que todas as pessoas devem ser tratadas com respeito, igualdade e liberdade, por meio da garantia de suas necessidades vitais. Doença ameaçadora à vida: Condição de saúde de qualquer etiologia, ativa, grave, progressiva e que causa sofrimento multidimensional ao paciente, seus familiares e cuidadores. Glossário paliativo: Diretório que reúne as definições dos principais termos e seus significados em Cuidados Paliativos, mantido pela Escola de Habilidades Paliativas. Planejamento antecipado de cuidados (PAC): Processo no qual uma pessoa com capacidade decisória preservada, com auxílio da equipe de saúde, expressa e registra seus valores, objetivos e preferências em relação a seus cuidados de saúde, com foco no fim da vida. Tem como objetivo garantir cuidados compatíveis com a biografia da pessoa, devendo ter como produtos finais: 1) A construção de um testamento vital e 2) A escolha de um procurador para cuidados de saúde. Em inglês, diz-se “Advanced Care Planning”, de forma que também pode ser traduzido como planejamento avançado de cuidado. Procurador para cuidados de saúde: Pessoa nomeada por outra para tomar decisões sobre seus cuidados de saúde quando esta não puder mais expressar sua vontade. Cabe ao procurador esclarecer os desejos do paciente diante de situações não previstas no testamento vital, sendo sua posição considerada a opinião leiga de maior relevância no processo decisório — exceto, é claro, pela própria vontade do paciente previamente expressa no testamento vital. Testamento vital: Tipo de diretiva antecipada de vontade (DAV), que versa sobre os tratamentos e preferências de cuidados relacionados à terminalidade da vida. Na Resolução do Conselho Federal de Medicina Nº 1995/2012, é trazida como sinônimo de DAV.
Referências bibliográficas
Dias LM, Bezerra MR, Barra WF, Nunes R, Rego F. Planejamento antecipado de cuidados: guia prático. Rev Bioét [Internet]. 2022Jul;30(3):525–33. Available from: https://doi.org/10.1590/1983-80422022303546PT
Cherny NI, Fallon MT, Kaasa S, Portenoy RK, Currow DC, editors. Oxford Textbook of Palliative Medicine. 6th ed. Oxford: Oxford University Press; 2021. 1–1409.