Categorias: Fundamentos, Manejo de Sintomas, Educação para a morte Autores: Juliana Martins, médica clínica e paliativista Publicado em: 12/03/2025
Contexto
A abordagem paliativa exige a identificação das múltiplas dimensões que compõem o ser humano e o seu sofrimento. Dame Cicely Saunders, por meio da escuta atenta das narrativas de seus pacientes, revelou que, assim como o ser humano, o sofrimento também é multidimensional. A partir dessa compreensão, ela cunhou o termo dor total. Nesta #PP, vamos explorar esse conceito, suas dimensões — física, psíquica, social e espiritual — e sua relevância para um cuidado verdadeiramente integral e compassivo.
A definição
Dor total é o sofrimento multidimensional que abrange todas as esferas da vida de uma pessoa — física, psíquica, social e espiritual —, interagindo de forma dinâmica e influenciando-se mutuamente. Neste contexto, o termo dor não se restringe à nocicepção: refere-se ao sofrimento em sua expressão mais ampla, de qualquer natureza.
A definição foi desenvolvida por Dame Cicely Saunders em 1964, a partir da constatação de que o cuidado direcionado exclusivamente ao alívio da dor física não era suficiente para atender às complexas necessidades dos pacientes com doenças ameaçadoras à vida. O enfrentamento da finitude expõe o paciente a um contato profundo com a experiência da dor total, que, se abordada apenas sob uma perspectiva biomédica, dificilmente será manejada de forma adequada.
A compreensão do sofrimento humano sob a ótica da dor total transformou a maneira como cuidamos de pessoas com uma doença ameaçadora à vida. Essa visão ampliada é resultado não apenas da sensibilidade clínica de Cicely Saunders, mas também de sua formação acadêmica diversa e integradora — como assistente social, enfermeira e médica. Sua percepção de que “a forma como um paciente responde mentalmente ao seu diagnóstico e à sua morte contribui para se e/ou como será vivida a sua dor total” reflete um entendimento profundo sobre o papel individual do paciente nesse processo, para além da responsabilidade do cuidador em reconhecer e cuidar do sofrimento em todas as suas dimensões.
As dimensões
Todas as dimensões do sofrimento humano contribuem para a geração e manifestação da dor total. Quando uma ou mais dessas dimensões não são reconhecidas e devidamente cuidadas, o sofrimento tende a se intensificar, reverberando e exacerbando-se nas demais esferas. Essa inter-relação reforça a importância de uma avaliação cuidadosa e de uma intervenção verdadeiramente multidisciplinar, única forma de proporcionar controle sintomático integral e promover qualidade de vida para o paciente e sua família.
Para compreender a complexidade dessas interações, é fundamental conhecer cada uma das dimensões envolvidas e seus componentes. A seguir, abordo cada uma delas individualmente:
Dimensão física: Refere-se ao sofrimento decorrente de sintomas físicos, como dor, dispneia, fadiga, náuseas, alterações gastrointestinais, entre outros. Esses sintomas podem ser secundários à doença de base, ao tratamento instituído ou às comorbidades pré-existentes. A definição mais atual de dor, segundo a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP), é “uma experiência sensitiva e emocional desagradável, associada ou semelhante àquela associada a lesão tecidual real ou potencial”. Essa definição já evidencia que a experiência dolorosa física não se limita ao dano tecidual, mas incorpora também aspectos emocionais.
Dimensão psicoemocional: Abrange o sofrimento mental e emocional, frequentemente desencadeado pelo processo de adoecimento e pelo enfrentamento da finitude. Pode incluir sintomas como ansiedade, tristeza, medo, angústia e depressão. Essas respostas emocionais variam de acordo com a personalidade do paciente, seu histórico de vida e experiências anteriores com doenças próprias ou de pessoas próximas.
Dimensão sócio-familiar: Refere-se ao impacto que a doença e o processo de terminalidade exercem sobre as relações sociais, familiares e sobre os papéis desempenhados pelo paciente na vida cotidiana. Engloba desde a perda de funções no ambiente familiar e no trabalho até o isolamento social e a insegurança financeira. Também se inserem aqui os determinantes sociais de saúde, como o acesso a serviços de saúde, suporte social e políticas públicas.
Dimensão espiritual: Relaciona-se à busca de sentido, propósito e conexão diante da experiência do adoecimento e da finitude. A espiritualidade abrange a maneira como o paciente se compreende no mundo, seu vínculo com os outros, com a natureza e com o transcendente ou sagrado. Não se restringe à religiosidade, mas pode incluir crenças religiosas quando presentes. Questões de fé, valores e significado da vida tornam-se centrais nesse eixo do sofrimento.
No diagrama a seguir, apresentamos exemplos de sofrimentos que compõem cada uma das quatro dimensões da dor total:
A experiência
Identificar as dimensões da dor total não é suficiente para compreendê-la como experiência vivida. Assim como o ser humano deve ser entendido de maneira integrada em suas múltiplas dimensões, o mesmo se aplica à dor total: cada aspecto do sofrimento pode amplificar ou aliviar o outro. Para ilustrar essa interação, vejamos um exemplo:
João tem 67 anos e é portador de Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC). Sua principal queixa é a dispneia (dimensão física). Ele é aposentado, viúvo, sem filhos, e mora sozinho. Embora tenha apresentado boa resposta inicial à Morfina, tem dificuldade de acesso ao medicamento e por vezes fica sem o remédio em casa (dimensão social), o que aumenta seu medo de que a dispneia piore a qualquer momento. Na noite anterior, acordou com falta de ar e, desde então, permanece acordado, observando de forma ansiosa a curva do oxímetro de pulso que mantém ao lado da cama (dimensão psíquica). Fez uso da dose habitual da Morfina, mas o sintoma não melhorou como de costume. Quando perguntado sobre o sentido de sua vida, responde que desde o falecimento da esposa vive esperando "a morte chegar", e que perdeu completamente o propósito desde que não consegue mais visitá-la no cemitério semanalmente, por conta da sua dispneia (dimensão espiritual).
Acreditar que apenas a prescrição de morfina resolverá o sofrimento de João é ignorar a complexa interação entre suas diferentes dimensões de sofrimento — e como uma afeta a outra. A construção de um plano de cuidados só alcançará o objetivo do cuidado se contemplar todas essas dimensões e a forma como se inter-relacionam em sua vida.
O cuidado
O maior desafio não está em diagnosticar a complexidade do sofrimento, mas em cuidar de todas as suas dimensões. Para isso, o trabalho em equipe é imprescindível, pois facilita não apenas a identificação e avaliação, mas também o alívio efetivo do sofrimento.
Outro ponto fundamental é reconhecer que a experiência do sofrimento é única para cada pessoa. Sendo assim, as propostas terapêuticas também devem ser individualizadas. Dois pacientes com a mesma doença de base e sintomas semelhantes podem demandar abordagens completamente distintas para alcançar o alívio do sofrimento.
Voltemos ao exemplo de João: a simples prescrição de Morfina não foi suficiente para resolver o problema. Buscar uma rede de apoio — vizinhos, uma instituição religiosa ou mesmo a unidade básica de saúde — que possa ajudá-lo a ter acesso ao medicamento pode ser uma solução para a questão social de dificuldade de acesso. A melhora do sintoma físico, como a dispneia, influencia na própria redução da ansiedade; no entanto, discutir com João um plano de ação para eventuais crises pode aumentar a sensação de controle, atenuando o sofrimento psicoemocional. No aspecto espiritual, conversar sobre outras formas de se conectar com a memória da esposa, além de uma eventual visita ao cemitério com apoio da rede de apoio, pode trazer conforto.
Não há fórmula mágica — há técnica, escuta ativa e personalização do cuidado.
Modo de usar:
Descubra como aplicar esta pílula paliativa de forma prática em seu dia a dia.
Avalie sistematicamente todas as dimensões do sofrimento, lembrando que o sofrimento físico, embora mais visível, pode estar sendo amplificado por questões emocionais, sociais ou espirituais.
Envolva a equipe interdisciplinar, garantindo uma abordagem ampla e integrada que responda às necessidades reais do paciente.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Dame Cicely Saunders: Médica, enfermeira e assistente social inglesa responsável pelo início do movimento hospice moderno e fundadora do St. Christopher’s Hospice, em Londres. Foi Dame Cicely que cunhou o termo dor total. Doença ameaçadora à vida: Condição de saúde de qualquer etiologia, ativa, grave, progressiva e que causa sofrimento multidimensional ao paciente, seus familiares e cuidadores. Dor: De acordo com a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP), é “uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada a uma lesão tecidual real ou potencial, ou descrita nos termos de tal lesão”. Dor total: Conceito criado por Dame Cicely Saunders na década de 1960, que propõe que a dor é multidimensional, não apenas física. Esse conceito apresenta o sofrimento como um fenômeno abrangente, envolvendo dimensões físicas, emocionais, sociais e espirituais, que estão interligadas e se influenciam mutuamente. Atualmente, esse entendimento pode ser ampliado para o termo sofrimento total, aplicando-se a outros tipos de sofrimento que, anteriormente, eram considerados exclusivamente físicos, como a dispneia e a náusea. Objetivo do cuidado: Objetivo a ser alcançado com o tratamento, definido com base nos valores e preferências do paciente por meio de um processo de tomada de decisão compartilhada. Exemplos de objetivos do cuidado incluem: "cura da doença", "prolongamento da vida a qualquer custo", "manutenção ou melhoria da funcionalidade", "prolongamento da vida sem medidas que causem sofrimento", "promoção da qualidade de vida" e "uma boa morte". Plano de cuidados: Estratégia através da qual o objetivo de cuidado será alcançado. É sempre individualizado, conforme fase da doença, valores e biografia do paciente.
Dica da especialista 🤌🏻
Você já tem o e-pali ou costuma ler A incrível newsletter paliativa? Então já sabe que essa é uma seção especial: aqui compartilhamos insights a partir da nossa visão e experiência profissional.
💡Facilitar o acesso a uma medicação, abrir espaço para conversas sobre espiritualidade ou ajustar a rotina para incluir pequenos prazeres pode ter um impacto profundo no alívio do sofrimento. Pergunte: “O que podemos fazer juntos para aliviar isso?” — e esteja preparado para acessar diferentes dimensões da experiência do paciente.
Referências bibliográficas
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Improving the Quality of Spiritual Care as a Dimension of Palliative Care: The Report of the Consensus Conference. Journal of Palliative Medicine. Volume 12, Number 10, 2009. DOI: 10.1089=jpm.2009.0142.