Categorias: Gestão em Cuidados Paliativos Autores: Arthur Fernandes, médico de família e paliativista Publicado em: 05/03/2025
Contexto
Discutir o acesso aos Cuidados Paliativos de forma ampliada, garantindo que ninguém fique para trás, exige o reconhecimento da Atenção Primária à Saúde (APS) como a base de um sistema de saúde estruturado, capaz de atender a maior parte das necessidades de saúde de uma população definida, utilizando ferramentas de abordagem individual, familiar e comunitária, envolvendo participação social e considerando a competência cultural.
Nesta #PP, exploramos o conceito de APS e sua interseção com a prática dos Cuidados Paliativos, destacando seu papel essencial na oferta de um cuidado integral, precoce e acessível.
Atenção “Básica”?
A Atenção Básica, mais apropriadamente denominada Atenção Primária à Saúde (APS), representa o primeiro nível de contato dos indivíduos, famílias e comunidades com o sistema de saúde. Caracteriza-se pela oferta de cuidados essenciais, baseados em tecnologias práticas, fundamentadas cientificamente e socialmente aceitas, garantindo um alcance universal e sustentável para a população, mediante sua participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter em todas as fases de seu desenvolvimento.
No Sistema Único de Saúde (SUS), a APS é estruturada por meio da Estratégia Saúde da Família, operada por equipes de Saúde da Família que atuam nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) espalhadas por todo o território nacional. Essas equipes estão inseridas nos mais diversos contextos: áreas urbanas e rurais, comunidades ribeirinhas, atendimento às populações do campo, das águas e das florestas, privadas de liberdade e em situação de rua, tornando-se a política de saúde mais capilarizada do país.
Diante dessa abrangência, a APS possui um enorme potencial para garantir o acesso aos Cuidados Paliativos, possibilitando que essa abordagem seja oferecida de forma precoce e integrada, independentemente da idade, condição clínica ou comorbidades do paciente.
Uma equipe, inúmeras relações de cuidado
As equipes de Saúde da Família estão inseridas nos territórios e mantêm um contato profundo com a comunidade. Por isso, podem e devem ser tratadas como pontos-chave na articulação dos Cuidados Paliativos dentro da Rede de Atenção à Saúde (RAS).
A partir do olhar atento das equipes das UBS para cada comunidade, é possível identificar vulnerabilidades individuais, familiares e territoriais, compreender o perfil epidemiológico local, mapear as principais necessidades de saúde, reconhecer os recursos de apoio disponíveis (sejam eles sociais ou familiares) e detectar lacunas na assistência. Além disso, as eSF podem atuar na mobilização de diferentes atores do cuidado, sejam governamentais (parcerias intersetoriais) ou do terceiro setor (ONGs, voluntariado, associações comunitárias etc.), potencializando o suporte oferecido aos pacientes.
No entanto, esse cuidado próximo exige um manejo sensível das relações interpessoais, que envolvem pacientes, familiares e equipe assistente.
Conhecendo as doenças e cenários de assistência
A APS tem como característica a abordagem abrangente e contínua dos indivíduos em todos os ciclos de vida, independentemente da condição de saúde, atuando tanto na prevenção e promoção da saúde quanto no diagnóstico, tratamento e reabilitação. Diante dessa dinâmica, é essencial que as equipes dominem ferramentas de identificação precoce das necessidades de Cuidados Paliativos, garantindo a inclusão oportuna dos pacientes nessa abordagem.
Instrumentos como o SPICT-BR auxiliam as equipes na triagem e identificação de pacientes elegíveis para Cuidados Paliativos, facilitando o planejamento do cuidado a longo prazo e favorecendo a longitudinalidade, um dos princípios fundamentais da APS. A incorporação dessa ferramenta na análise do território fortalece o trabalho das equipes de Saúde da Família, permitindo um cuidado mais direcionado e efetivo.
Além disso, é importante lembrar que todas as pessoas que transitam entre os diferentes níveis de atenção – seja na atenção secundária (policlínicas, centros de especialidades etc.) ou atenção terciária (hospitais) – foram encaminhadas pela APS e, muitas vezes, retornam a ela após o atendimento especializado. Diferente de outros serviços de saúde, a APS não trabalha com "altas" definitivas: todas as pessoas residentes no território continuam vinculadas a uma equipe de APS, a menos que mudem de endereço ou em casos de óbito. Ainda assim, a família permanece sob os cuidados da equipe.
Dessa forma, a APS se consolida como um ponto estratégico na oferta de Cuidados Paliativos, garantindo a identificação precoce das necessidades dos pacientes, o manejo de sintomas sempre que possível, a referência para outros níveis de atenção quando necessário e o acompanhamento integral da família, antes e após a morte do paciente. A Figura 1, abaixo, ilustra essa integração ao longo do tempo.

Conhecendo e cuidando das pessoas
Um dos maiores potenciais da APS é a capacidade de cuidar e gerenciar as relações envolvidas no processo de saúde. Para isso, os profissionais da Estratégia de Saúde da Família utilizam abordagens estruturadas, como o Método Clínico Centrado na Pessoa, que facilitam a coordenação do cuidado, o acesso, a longitudinalidade e a integralidade.
Conhecer verdadeiramente uma pessoa significa enxergá-la em seu contexto próximo – que inclui sua família e seus entes queridos – e também em seu contexto ampliado – como trabalho, lazer, escola, comunidade e crenças religiosas. Esse olhar individualizado pode ser potencializado pelo entendimento da dinâmica familiar, por meio de ferramentas como conferências familiares, genogramas, mapas de rede, ecomapas e ciclos de vida. Além disso, o trabalho comunitário, por meio da participação social e grupos operativos, fortalece ainda mais a assistência, promovendo um cuidado alinhado às necessidades locais.
Na prática dos Cuidados Paliativos na APS, a chave está em valorizar as biografias das pessoas e suas relações, indo além da doença com a qual convivem. Esse compromisso exige escolha e esforço diários, garantindo que o cuidado seja construído de forma humanizada e respeitosa.
No entanto, devido à amplitude de atuação da Equipe de Saúde da Família, nem sempre será possível atender a todas as demandas de forma isolada. Assim, a equipe pode recorrer a serviços de matriciamento e discussão de casos ou encaminhar pacientes dentro da RAS, assegurando que eles recebam suporte especializado sempre que necessário.
Por fim, mas não menos importante, o autocuidado dos profissionais e o trabalho em equipe são aspectos fundamentais para a qualidade e sustentabilidade do trabalho na APS.
Modo de usar:
Descubra como aplicar esta pílula paliativa de forma prática em seu dia a dia.
Conheça o território onde está inserido: faça um diagnóstico de saúde da comunidade para entender as principais características daquela área, como idade, doenças prevalentes e vulnerabilidades, ajudando a prever as necessidades de Cuidados Paliativos.
Construa uma maleta de ferramentas estratégicas: Aprimore suas habilidades em comunicação clínica para lidar com pessoas em diferentes estágios da vida e situações de saúde complexas. Utilize instrumentos que facilitem a abordagem familiar e comunitária, como conferência familiar, genograma, ecomapa e rodas de conversa.
Reconheça suas limitações: compreenda que a assistência à saúde, por si só, pode não ser suficiente para atender a todas as demandas do território. Por isso, estabeleça parcerias intersetoriais com setores como Assistência Social, Justiça e Educação. Fortaleça redes de apoio envolvendo agentes comunitários, associações de moradores, ONGs, entidades religiosas e voluntários, garantindo um cuidado ampliado e sustentável.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Atenção Primária à Saúde (APS): De acordo com o Ministério da Saúde, é o primeiro nível de atenção em saúde, caracterizado por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a redução de danos. Trata-se da principal porta de entrada ao SUS e do centro de comunicação entre toda a Rede de Atenção à Saúde. O modelo brasileiro de APS é a Estratégia Saúde da Família (ESF), organizada a partir de equipes de Saúde da Família (eSF) que atuam nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) nos municípios de todo o país. Rede de Atenção à Saúde (RAS): De acordo com o Ministério da Saúde, é o “arranjo organizativo de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas que, integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado”. Sistema Único de Saúde (SUS): Sistema público de saúde brasileiro que oferece atenção integral à saúde a todas as pessoas que se encontram em território nacional. Criado através da Lei 8.080 em 1990 e gerido pelo Ministério da Saúde, é considerado um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo. Orienta-se princípios da Universalidade, Equidade e Integralidade. Supportive and Palliative Care Indicators Tool (SPICT-BR): Ferramenta de triagem para identificação de pacientes com risco de piora clínica e que possam necessitar de Cuidados Paliativos, com base em sinais de deterioração clínica e complexidade de sintomas. Amplamente adotada em nível internacional, é validada para o português brasileiro. Publicada originalmente em 2010 por Kirsty Boyd e Scott Murray, do Primary Palliative Care Research Group da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Unidade Básica de Saúde (UBS): Local de atendimento da(s) equipe(s) de Saúde da Família (eSF), sendo a principal porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS).
Dica da especialista 🤌🏻
Você já tem o e-pali ou costuma ler A incrível newsletter paliativa? Então já sabe que essa é uma seção especial: aqui compartilhamos insights a partir da nossa visão e experiência profissional.
💡Preciso te contar uma verdade: cuidar dói. Quando? Sempre que for necessário. Escolher enxergar as histórias das pessoas também significa se responsabilizar por elas e compartilhar afetos. Permita-se envolver, sofrer até, e verdadeiramente experimentar cuidar (e ser cuidado) por quem te convida para um lugar muito especial: seu interior, sua casa.
Referências bibliográficas
Organização Mundial da Saúde. Declaração de Alma-Ata. Alma-Ata:OMS, 1978. 3p.
Rodrigues, RD; Anderson, MIP. Complexidade e integralidade na medicina de família e comunidade e na atenção primária à saúde: aspectos teóricos. In: Gusso, GDF; Lopes, JMC; Dias, LC. Tratado de Medicina de Família e Comunidade - princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed, 2019.
University of Edinburgh. Supportive and palliative care indicators tool (SPICT), 2020. SPICT-BR: Supportive and Palliative Care Indicators Tool (Brazilian version). Disponível em: https://www.spict.org.uk/the-spict/spict-br/
Milstein, J. (2005). A Paradigm of Integrative Care: Healing with Curing Throughout Life, “Being with” and “Doing to”. Journal of Perinatology, 25(9), 563-568. https://doi.org/10.1038/sj.jp.7211358
Que beleza ver a contribuição de companheiros de jornada - e amigos - como o Arthur! 🧡✨
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