Categorias: Fundamentos Autores: Fernanda Tourinho, médica clínica e paliativista, Juliana Martins, médica clínica e paliativista Publicado em: 12/02/2025
Contexto
Na prática em saúde, a evidência científica é essencial para validar o impacto das abordagens e ferramentas utilizadas. Os Cuidados Paliativos não são exceção e, por isso, a produção de conhecimento deve seguir rigorosos critérios metodológicos.
Muitas vezes, os Cuidados Paliativos são erroneamente percebidos como uma prática baseada apenas no "bom senso", sem embasamento científico. No entanto, essa abordagem possui uma base robusta de pesquisas e diretrizes que garantem seu desenvolvimento como uma área técnica e fundamentada em evidências.
Nesta #PP, discutimos parte da produção científica que sustenta os Cuidados Paliativos, demonstrando seu impacto e promovendo uma prática cada vez mais qualificada.
Cuidados Paliativos possuem evidências?
Cuidados Paliativos são uma ciência fundamentada em evidências, que alia rigor técnico e sensibilidade humana para oferecer um cuidado integral e de qualidade. Longe de ser apenas uma prática baseada no "bom senso", essa abordagem utiliza conhecimento científico sólido para manejar sintomas, promover qualidade de vida e garantir tomadas de decisão alinhadas aos valores dos pacientes. Seu impacto é mensurável e respaldado por estudos que comprovam sua eficácia em diversas condições graves e progressivas, com um crescente interesse pela pesquisa em Cuidados Paliativos que se reflete no crescimento exponencial no número de publicações científicas sobre essa temática nos últimos anos.

Inicialmente, grande parte das pesquisas focavam em pacientes oncológicos, uma vez que foram os primeiros a receber Cuidados Paliativos de forma estruturada. No entanto, a prática expandiu-se para outras doenças graves ameaçadoras à vida, e estudos de qualidade vêm demonstrando seus benefícios em pacientes com insuficiência cardíaca avançada, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), doenças neurodegenerativas, entre outras condições.
O crescimento da base de evidências reforça que Cuidados Paliativos não devem ser restritos a uma única patologia, mas sim aplicados a qualquer paciente com sofrimento significativo decorrente de uma doença grave, independentemente do prognóstico.
Qualidade da evidência científica
Embora a produção científica sobre Cuidados Paliativos tenha crescido exponencialmente nas últimas décadas, o volume de publicações, por si só, não é suficiente. É fundamental uma análise criteriosa da qualidade metodológica e a definição do nível de evidência, garantindo que a prática clínica seja embasada em ciência sólida e aplicada com respaldo técnico adequado.
A hierarquia da evidência varia conforme a metodologia e qualidade do estudo, sendo que níveis mais altos de evidência fornecem maior confiabilidade na tomada de decisões clínicas. Embora a compreensão desses tipos de estudo seja fundamental para a prática baseada em evidências, esta #PP não tem como objetivo explorá-los em profundidade, mas reforçar a importância da análise crítica da literatura na aplicação dos Cuidados Paliativos.

Quais são os desfechos avaliados?
Os Cuidados Paliativos têm seu impacto medido por meio de desfechos que refletem seu objetivo primário: o alívio do sofrimento de pacientes, familiares e cuidadores que enfrentam doenças que ameaçam a vida, avaliado através da sua repercussão na qualidade de vida, além da eficiência no uso de recursos de saúde. Entre os principais desfechos estudados, destacam-se:
Melhor controle dos sintomas físicos, psíquicos, sociais e espirituais: Estudos demonstram que a abordagem paliativa reduz a intensidade de sintomas como dor, dispneia, fadiga, ansiedade e depressão, promovendo maior conforto ao paciente.
Melhora da qualidade de vida dos pacientes e de seus cuidadores: A introdução precoce dos Cuidados Paliativos está associada a uma melhor qualidade de vida, não apenas para o paciente, mas também para seus cuidadores e familiares.
Redução de internações desnecessárias e intervenções fúteis: Há evidências de que os Cuidados Paliativos contribuem para evitar hospitalizações de última hora, diminuindo o uso de tratamentos invasivos e desproporcionais aos objetivos do cuidado em pacientes sem benefício real dessas intervenções.
Impacto econômico: Embora não seja um objetivo primário, a literatura científica tem explorado amplamente os benefícios econômicos dos Cuidados Paliativos, indicando que, por meio do melhor gerenciamento do cuidado, há redução de custos associados a internações prolongadas, uso de unidades de terapia intensiva (UTI) e procedimentos desnecessários. Estudos apontam que a introdução precoce da abordagem pode otimizar os gastos em saúde sem comprometer a qualidade da assistência.
Além de avaliar os desfechos do impacto da abordagem paliativa, a literatura também investiga as ferramentas, tratamentos e estratégias utilizadas para alcançá-los.
Impacto em sobrevida e qualidade de vida
O estudo clássico de Temel et al. sobre Cuidados Paliativos precoces em pacientes com câncer de pulmão não pequenas células trouxe evidências robustas sobre os benefícios dessa abordagem e influenciou a prática e o reconhecimento dos Cuidados Paliativos em todo o mundo.
Entre os achados mais relevantes, destacam-se:
Cuidados Paliativos podem impactar positivamente a sobrevida. Pacientes que receberam acompanhamento da equipe de Cuidados Paliativos viveram, em média, 2,7 meses a mais do que aqueles que receberam apenas cuidados oncológicos habituais. Curiosamente, esses pacientes receberam menos tratamentos agressivos no fim de vida, mas viveram mais, desafiando a ideia equivocada de que Cuidados Paliativos significam "desistir do paciente";
Cuidados Paliativos precoces estão associados a uma redução da depressão. No estudo, apenas 16% dos pacientes no grupo paliativo apresentaram sintomas depressivos, contra 38% do grupo controle. Essa diferença não foi atribuída a diferenças no uso de antidepressivos entre os grupos.
Melhora da qualidade de vida. Pacientes que receberam Cuidados Paliativos precoces relataram melhor qualidade de vida ao longo do tratamento e maior desenvolvimento de consciência prognóstica, evidenciada por mais registros sobre as preferências de tratamentos no fim da vida (reanimação cardiopulmonar). Esse achado reforça que ter acesso a informações claras sobre a doença e suas perspectivas não é deprimente, mas, ao contrário, pode aumentar a sensação de controle e bem-estar.
Embora a maior parte dos ensaios clínicos randomizados (RCTs) em Cuidados Paliativos tenha sido conduzida com pacientes oncológicos, evidências similares foram observadas em estudos com indivíduos portadores de insuficiência cardíaca, DPOC e outras condições crônicas ameaçadoras à vida. Além disso, um achado relevante é que os benefícios da abordagem não se restringem às equipes especializadas: Cuidados Paliativos básicos, oferecidos por profissionais treinados, também demonstraram impacto positivo. Isso reforça a necessidade de capacitar o maior número possível de profissionais de saúde, garantindo que mais pacientes tenham acesso a um cuidado qualificado e humanizado.
Alocação de recursos e impacto financeiro
Embora o objetivo principal dos Cuidados Paliativos seja melhorar a qualidade de vida e aliviar o sofrimento, é razoável supor que a melhor gestão dos recursos resulte em um impacto financeiro positivo. Diversos estudos demonstram que a implementação da abordagem paliativa reduz significativamente os custos hospitalares, principalmente pela diminuição do uso de serviços intensivos, como internações prolongadas em UTIs, exames laboratoriais desnecessários e intervenções desalinhadas com o objetivo do cuidado do paciente.
Um dos achados mais relevantes é que essa economia é ainda mais expressiva entre os pacientes que falecem durante a internação. Em um estudo, pacientes que receberam Cuidados Paliativos tiveram uma redução ajustada de US$ 1.696 por internação quando sobreviveram e US$ 4.908 por internação quando faleceram. Outro levantamento estimou que a implementação de programas eficazes de Cuidados Paliativos poderia gerar uma economia anual entre US$ 84 milhões e US$ 252 milhões no sistema Medicaid, nos Estados Unidos.
Esses achados reforçam que a priorização de tratamentos apropriados e a redução de intervenções intensivas desnecessárias – especialmente quando orientadas pelo planejamento antecipado de cuidados (PAC) – não apenas melhoram a experiência do paciente, como também geram uma economia significativa para os sistemas de saúde.
Modo de usar:
Descubra como aplicar esta pílula paliativa de forma prática em seu dia a dia.
Exponha as evidências para seus colegas, mostre as referências e cite os artigos. Demonstre que Cuidados Paliativos é uma ciência baseada em evidências, e não em senso comum.
Implemente ações paliativas mesmo sem uma equipe especializada. Estude e incentive seus colegas a se capacitarem, ampliando juntos o impacto na assistência aos pacientes.
Apresente os dados aos gestores. Mesmo que você não esteja focado nos custos, eles estão. Demonstre como a abordagem paliativa pode otimizar recursos e melhorar a assistência na sua unidade, mas não prometa economia - seu compromisso é com a qualidade de vida dos pacientes - a redução de custos, quando ocorre, é um ganho secundário.
Expanda seu conhecimento além da oncologia. Cuidados Paliativos beneficiam pacientes com diversas condições, e há literatura específica para cada grupo de doenças. Direcione seus estudos para os casos mais frequentes na sua prática.
Glossário Paliativo 🗺
O glossário paliativo traz os principais termos que você precisa conhecer em cuidados paliativos. A cada edição da Pílula Paliativa você encontrará neste espaço os termos citados.
Consciência prognóstica: Entendimento do paciente e/ou familiar sobre o curso natural da doença e os desfechos possíveis e mais prováveis. Demanda não apenas o conhecimento do prognóstico, mas também a integração psíquica desta informação pelo o indivíduo. Cuidados paliativos básicos: Conhecimentos e práticas mínimas de Cuidados Paliativos que devem ser do domínio de todos os profissionais de saúde (não especialistas em Cuidados Paliativos) e devem ser oferecidos pela equipe assistente desde o diagnóstico de uma doença que ameaça a continuidade da vida. Cuidados paliativos precoces: Cuidados Paliativos ofertados precocemente no curso de uma doença que ameaça a vida, idealmente desde o diagnóstico e fora da fase de terminalidade, que maximizam os benefício para os pacientes, familiares e cuidadores. Segundo estratificação do plano de cuidados proposta pelo Hospital Regional do Cariri em 2014, este termo designa Cuidados Paliativos destinados a pacientes com bom status funcional (KPS ou PPS >60%), quando é improvável que a morte ocorra em decorrência de sua doença de base. De forma geral, há a priorização do tratamento curativo e restaurativo, não havendo indicação de limitação de suporte orgânico artificial. Esta classificação não é de compreensão universal. Evidência científica: Elemento obtido através de metodologia científica que apoia ou refuta uma hipótese. Na Medicina, fundamenta decisões e práticas, garantindo que intervenções, tratamentos e condutas sejam pautados em conhecimento comprovado e reprodutível, minimizando vieses e garantindo maior segurança e eficácia. Conforme pirâmide hierárquica dos tipos de estudos, tem seu nível classificado de 1 a 6 e sua qualidade classificada em A, B, C ou D, de acordo com o sistema GRADE. Qualidade de vida: De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) é “a percepção que um indivíduo tem da sua posição na vida. Esta percepção é feita em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações, e no contexto da cultura e dos sistemas de valores em que vive.“ Paliativista: Profissional de saúde especialista em Cuidados Paliativos. No Brasil, o reconhecimento da especialização em Cuidados Paliativos se dá através da prova de título - promovida pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), ****em parceria com a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), anualmente para médicos(as) e enfermeiros(as) - ou da residência médica ou multiprofissional - que pode ser feita por profissionais da Enfermagem, Farmácia, Fonoaudiologia, Fisioterapia, Nutrição, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional. Planejamento antecipado de cuidados (PAC): Processo no qual uma pessoa com capacidade decisória preservada, com auxílio da equipe de saúde, expressa e registra seus valores, objetivos e preferências em relação a seus cuidados de saúde, com foco no fim da vida. Tem como objetivo garantir cuidados compatíveis com a biografia da pessoa, devendo ter como produtos finais: 1) A construção de um testamento vital e 2) A escolha de um procurador para cuidados de saúde. Em inglês, diz-se “Advanced care planing”, de forma que também pode ser traduzido como planejamento avançado de cuidado. Sobrevida: Tempo de vida após um determinado marco temporal - por exemplo, sobrevida após diagnóstico de uma doença ou alta hospitalar.
Dica da especialista 🤌🏻
Você já tem o e-pali ou costuma ler A incrível newsletter paliativa? Então já sabe que essa é uma seção especial: aqui compartilhamos insights a partir da nossa visão e experiência profissional.
💡No hospital que trabalho, faço sessão clínica mensal com os residentes. Sempre trago artigos bem estruturados e estudos com metodologia contundente, mostrando que a prática de Cuidados Paliativos se dá através de evidência científica de qualidade, não de bom senso, opinião ou feeling. Que tal criar uma sessão científica no seu ambiente de trabalho também?
Referências bibliográficas
Temel JS, Greer JA, Muzikansky A, Gallagher ER, Admane S, Jackson VA, et al. Early Palliative Care for Patients with Metastatic Non–Small-Cell Lung Cancer. New England Journal of Medicine [Internet]. 2010 Aug 19;363(8):733–42.
Temel JS, Greer JA, Admane S, Gallagher ER, Jackson VA, Lynch TJ, et al. Longitudinal perceptions of prognosis and goals of therapy in patients with metastatic non-small-cell lung cancer: Results of a randomized study of early palliative care. Journal of Clinical Oncology. 2011 Jun 10;29(17):2319–26.
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El-Jawahri A, Greer JA, Temel JS. Does Palliative Care Improve Outcomes for Patients with Incurable Illness? A Review of the Evidence. The Journal of Supportive Oncology [Internet]. 2011 May;9(3):87–94.
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GRADE WORKING GROUP. Disponível em: gradeworkinggroup.org/. Acessado em: fev. 2025.
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